Por Shenia Karlsson
Eis que chegamos em Março, nosso mês. Todos os anos observamos um cenário mais afável nesse período em específico, não que as violências contra nós diminuam, óbvio, mas somos tomados por um espírito repentino em que a mulher é enaltecida e celebrada, embora nossa jornada seja paulada após paulada. Poderia escrever sobre empoderamento, sobre matriarcado, sobre coisas belas do feminismo. Optei por um caminho mais tortuoso, abordar um tema recorrente em minha clínica psicológica. Lá vem a psicóloga novamente dizer que só pode falar de sua experiência clínica. Pois é, estou aqui novamente amigues.
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Falar do mês da mulher para mim é um processo natural, estou muito familiarizada com tal universo, entretanto, reduzo-me a insignificância de um lugar pontual, daquela que escuta atenta as repetidas queixas no tão desejado espaço seguro. E é sobre a mulher negra e suas dores que escolhi abordar. Mas lá vem ela falar da solidão da mulher negra! Mulher negra palmita como homem negro, não tem diferença! Mulher negra só quer negro padrão, por isso está sozinha! Quem nunca escutou tais bordões em nossa comunidade, não é mesmo?!
Mulheres negras são vistas como raivosas e ressentidas, infelizes e reclamonas, escutamos com frequência que nossas queixas são infundadas, que somos exageradas, e que tudo é racismo. Sabemos bem os enfrentamentos diários, as dores no armário, o choro engolido. Existe uma realidade dura, ninguém interessa-se em acolher mulheres negras, o mundo parece nos odiar deliberadamente. Tem alguns caminhos reservados a nós, a invisibilização, a hostilidade ou o puxa saquismo, este último é quando somos muito úteis aos interesses alheios.
Mas nem só de dor vive a mulher negra. Também podemos observar um esforço coletivo em refletir criticamente sobre esses destinos, produzir discurso na primeira pessoa, fortalecer as redes de apoio, criar aquilombamentos e, não mais importante, entender que autocuidado é fundamental e saúde mental é inegociável. A questão é que a sociedade tem forjado mulheres negras mais poderosas, mais autodeterminadas, potentes, com mais figuras de identificação positiva. Parece que agora é moda ser mulher negra, não é à toa que muitas irmãs têm se reconhecido negras, fenômeno bem novo no Brasil. Até pouco tempo atrás, ser negra era carregar o defeito de cor e nem todas queriam. Até as brancas têm “avó negra”. Contém ironia!
Apesar de todo esse movimento de empoderamento, o mercado afetivo para mulheres negras têm mudado ao passo de uma tartaruga. É bem verdade que nos tornamos muito mais interessantes aos olhos de uma sociedade que antes nos ignorava por completo. Entretanto, o pouco de visibilidade é meramente instrumental, pois estamos em escassez de novas histórias, de novas trajetórias e, quando chegamos lá, somos atacadas pois nossos corpos não estão identificados socialmente com o sucesso, a capacidade e com o feminino.
A mulher negra infelizmente encabeça os índices de celibato, de concubinato, de monoparentalidade, de violência e de sexualização de seu corpo. Voltando ao tema mercado afetivo, as queixas não diminuem, só aumentam. Diante deste cenário cruel e ingrato, muitas mulheres negras têm demonstrado um sentimento de desesperança, de exaustão, de até preguiça quando o assunto é relacionamento. Como está o mercado heteronormativo para a mulher negra?
Este artigo tem o objetivo de abordar um tema relativamente novo, o herteropessimismo e como esse fenômeno impacta a vida da mulher negra em específico. Este conceito geralmente é abordado somente pelo recorte de gênero, sendo assim achei que poderíamos aprofundar a questão racial e discutir os prejuízos emocionais das mulheres negras diante desse fenômeno. É um conceito cujo objetivo é problematizar a heteronormatividade por possuir em suas bases a violência e a desigualdade como estruturantes.
A pesquisadora dos estudos de gênero, sexualidade e questões das mulheres, Asa Seresin, ressalta que a crise da heteronormatividade está intrinsecamente ligada à cultura ocidental branca patriarcal, determinando até hoje performatividades de gênero obsoletas e insuficientes. A autora diz: “heteropessimismo é a desidentificação performativa de mulheres com a sua própria heterossexualidade” (2019). Para ela, a heteronormatividade limita experiências, perpetua a subjugação feminina e cria tensões incontornáveis. O heteropessimismo consiste num sentimento compartilhado coletivamente entre as mulheres, em que generaliza o fracasso das relações heteronormativas e instala um sentimento de profunda desconfiança dos homens.
Ademais, aqui temos que salientar o lugar do homem negro enquanto figura estigmatizada, como seres incapazes de estar numa relação formal sem que esteja numa posição de suspeição, o racismo assim acaba por reforçar o conjunto de preconceitos acerca do homem negro: infiéis, palmiteiros, irresponsáveis, insensíveis e objetos de desvalorização. Se o homem branco cisgênero hétero tornou-se questionável, quiçá o homem negro cisgênero hétero.
As mulheres negras vivem uma ambivalência, entre o desejo de viver uma relação amorosa e a iminência da desilusão. A relação conjugal ainda é um valor, um status, um capital social, ao passo que muitas mulheres podem internalizar o fracasso feminino caso não alcance o tão sonhado relacionamento amoroso. E para as mulheres negras, o sentimento agrava-se pelo nosso histórico de exclusão sistemática do mercado afetivo. Para enfrentar essa dura realidade e tantos desencontros, as mulheres em geral, e principalmente mulheres negras, estão produzindo uma espécie de aversão aos homens, uma devolutiva da desvalorização que eles costumam perpetuar.
Começamos a perceber mulheres negras num pseudo processo de resiliência e naturalização a solidão como um posicionamento político do existir, uma espécie de mecanismo de defesa em que racionalizam-se as dificuldades para não entrar em contato com a dor da rejeição, da exclusão e da impossibilidade. É comum ouvir nas redes sociais que ser hétero é um castigo, a heteronormatividade é um saco, que homens héteros são precários e assim por diante. Como contornar essa situação?
Não existe uma receita mágica, ainda estamos reconstruindo rotas de sentido outrora perdidas durante o processo da colonização e escravização, processos esses causadores de sérios prejuízos em nossas relações afetivas. É bem verdade que o modelo ocidental relacional acarretaria mais cedo ou mais tarde um descompasso nesse âmbito, na linguagem popular ia dar ruim, né?! Não podemos esquecer que trata-se de uma comunidade calejada de traumas ainda não curados, feridas abertas. Talvez pensar nas relações sob outros vieses pode ser bem interessante. O modelo colonial é patologizante e cada dia torna-se menos contemplativo para nossa comunidade.
Uma coisa é certa, mulheres encabeçam o ranking do heteropessismo, especialmente mulheres negras por terem mais prejuízos simbólicos no modelo heteronormativo de relação. Este modelo está a cada dia mais desacreditado, e consequentemente faz com que mulheres negras enfatizem as experiências negativas em detrimento de encontrar seu par ideal. Será que seremos capazes de promover encontros saudáveis sem todos os prejuízos que o racismo produz em nossas vidas? Chegará o tempo em que a mulher negra cisgênero e hétero poderá vislumbar um lugar nesse mercado perverso e cruel? A esperança continua.
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