
O ano de 1830, que marca a instituição do primeiro templo de Candomblé do Brasil, foi caracterizado pelo crepúsculo do Livro V das Ordenações Filipinas, que criminalizava a heresia, a blasfêmia de Deus e punia a feitiçaria com pena de morte. Em dezembro daquele mesmo ano era aprovado o primeiro código penal brasileiro, que incriminava a zombaria da religião oficial e o culto a qualquer outra religião, bem como quaisquer ideias contrárias à existência de Deus. Acima do código de 1830 pairava a Constituição do Império, de 25 de março de 1824, que reafirmava a “Religião Catholica Apostólica Romana” como religião oficial de estado.
Os horrores do escravismo, o cristianismo compulsório e a supremacia racial e religiosa legitimada pela norma jurídica (o curandeirismo prossegue tipificado no Código Penal vigente) não foram suficientes, entretanto, para impedir três africanas – Iyá Detá, Iyá Akalá e Iyá Nassô de edificarem o Ile Axé Iya Nassô Oka, conhecido como Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, atualmente instalado na Vasco da Gama, em Salvador – Bahia.
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À perseguição estatal somou-se, a partir dos anos 70 do século passado, o discurso de ódio religioso apelidado de exercício da liberdade de expressão que basicamente atribui o aquecimento global, o buraco na camada de ozônio, o terraplanismo e dentadura trincada à existência das religiões afro-brasileiras.
Não será coincidência, a propósito, a similaridade entre a satanização das religiões afro-brasileiras utilizada para difundir o medo/multiplicar fortunas sacerdotais e o discurso nazista que atribuía aos judeus a responsabilidade por todos os males do planeta.
Por ocasião da tragédia climática que assolou o Rio Grande, por exemplo, houve quem chegasse à engenhosa conclusão de que o problema decorreria do grande número de terreiros de batuque existentes no estado mais branco do Brasil.
A novidade, publicada em 2017 numa pesquisa coordenada pela socióloga paranaense Lena Garcia, coadjuvada pelo autor dessas linhas, é que na cidade de São Paulo, entre o censo de 2000 e de 2010, as religiões afro-brasileiras experimentaram crescimento de cerca de 40%.
O perfil do macumbeiro novo não é mero detalhe: jovem negro(a), com formação universitária e renda superior – produto das ações afirmativas e da revolução provocada pelo Movimento Negro nas últimas décadas que não se resume à dimensão estética, como supõe muita gente boa.
O censo de 2022 ilustra uma realidade perceptível a olho nu mas mantém o equívoco na redação da pergunta sobre religião e com certeza subnotifica o número de brasileiros(as) que professam as matrizes africanas: se os macumbeiros somassem 1% da população o discurso de ódio religioso não teria produzido tantas fortunas e não teria sido explorado eleitoralmente a ponto de contribuir para a eleição de um capitão que trata quilombolas como animais inúteis inclusive para procriação, frase anunciada em meio a estrondosas gargalhadas no Clube Hebraica do Rio de Janeiro.
Em 1985 a luminosa canção “Milagres do Povo”, de Caetano, foi trilha da minissérie “Tenda dos Milagres”, escrita pelo mesmo Jorge Amado que defendeu efusivamente a liberdade de crença na Constituição de 1946 mas não foi capaz de trair o racismo. O aparente paradoxo, renovado pelo censo de 2022, reside na frase quase épica assinada por Caetano – “Quem era ateu e viu milagres como eu’!!!
Ou, na genialidade de Bituca – “Quem traz no corpo essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”!!!!
Texto: Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP, fundador do Idafro – Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras, é Ogã do Candomblé.
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