Racismo e Machismo: o cinismo cotidiano da estrutura social brasileira

0
Racismo e Machismo: o cinismo cotidiano da estrutura social brasileira
Ilustração: Nicholle Kobi

Racismo e machismo é uma questão de cultura, mas também de educação, se aprendemos a reproduzi-los, devemos aprender a exterminá-los. E como se faz isso? Reeducando nossos olhares, nossas posturas, nossos corpos e ações diante deles! É preciso treinar o olhar para começar a enxergar o racismo e o machismo presentes nas piadinhas, nas brincadeiras, nos comportamentos, nas ideias, no campo afetivo, nas instituições, nas relações, enfim no dia a dia.

Hoje acordei pensando o quanto é difícil ser mulher e negra neste país, o quanto nossa cultura nos subjuga e nos oprime, e o quanto somos resilientes perante as agressões cotidianas pela qual passamos. Quando ando na rua não acho normal uma mulher passar e instantaneamente o homem olhar para a bunda dela expressando desejo, seguido de palavras de baixo calão ou de “elogios” que para mim são ofensas.

Notícias Relacionadas


Isso não é normal, e nem instintivo, muito menos natural, isso é uma cultura pela qual o homem é moldado a se comportar e atender um padrão heternormativo de ser. E se a mulher recusa tal investida, tem homem que ainda revida, acha ruim, não aceita. Encara a recusa como um ultraje; pensam que a mulher deve ser disponível para o assédio e receptiva para a prática da conquista e da caça. Homens melhorem. Está na hora de evoluir tais pensamentos e práticas.

Por outro lado, algumas pessoas medem sua autoestima pelo assédio do outro! É comum relatarem que se uma mulher passar na frente de uma construção e os homens não mexerem com ela é porque ela está acabada, arrasada, feia. Isso é extremamente agressivo; cantar uma mulher, chamar ela de gostosa ou utilizar outras expressões não são elogios, são agressões. Há um limite entre aquilo que é licito e aquilo que é ofensivo. A sociedade precisa rever certos padrões de comportamentos considerando toda as desigualdades provocadas pelas assimétricas de classe, raça e gênero.

Essa cultura de achar que mulher é disponível o tempo todo é fruto da concepção do uso e fruto do corpo feminino como uma mercadoria. Isso é concepção cotidiana da cultura do estupro. Espaço explicito das violências sofridas em decorrências dos assobios, dos olhares insistentes, dos comentários de cunho sexual, dos xingamentos, das perseguições nas ruas, dos toques e das passadinhas de mão, das encostadas nos transportes públicos, dos estupros em espaços públicos e privados, das inúmeras e mais variadas agressões até o assassinato. No lar ou na rua essa violência toma contornos desproporcionais.

Como se mulher fosse objeto a disposição do desejo masculino e heteronormativo. Considerando a mulher como sexo frágil, passivo da conquista, descartável, podendo ser trocada a qualquer momento, como uma coisa qualquer. Mulher não é objeto, para pegar, violentar, trocar, enjoar, se incomodar e substituí-la apressadamente justificando a razão em detrimento da emoção!  É óbvio que mulher não é objeto, totalmente óbvio, mas extremante operante nas relações.

Pensamentos e atitudes como essas são parte da objetificação e coisificação do corpo da mulher. Quando pensamos nessa categoria de gênero em consonância com a categoria raça, percebemos o desastre colonial a qual estamos submersas, embora reagimos e ditamos nosso protagonismo, é recorrente as situações agressivas pelas quais muitas de nós experimentam, seja no trabalho, na faculdade, na igreja, na rua, no lar e em todo e qualquer lugar.  

A inferiorização da mulher advinda do patriarcado e a noção da inferioridade do negro advinda do etnocentrismo racista, concepções fundantes no século 18, ainda povoam o imaginário coletivo das pessoas no século 21, e mais, ainda comunicam as representações sociais e conformam os papéis de gênero e raça que desempenham homens e mulheres, negros e negras na sociedade.

A máxima popular branca para casar, mulata para fornicar e negra para Fuder…ainda está vigente na sociedade, por mais que haja a negação desta, tal expressão se consolida no coletivo como um meme, ou melhor dizendo, como um mantra que condiciona o subconsciente levando a reprodução dessa normativa estabelecida pelo social, e totalmente acolhida como padrão de escolha afetiva e condicionante comportamental.

Por mais que anuncie discursos e textos contra tal padrão, percebemos que boa parte dos comportamentos afetivo-sexuais correspondem a essa máxima; e se desdobram na violência que ainda orienta a maneira de se relacionar com as mulheres negras. Por mais que se anunciem discursos e escrevam textos promissores considerando raça, classe, gênero e diversidade sexual a prática não corresponde as ideias e pensamentos. Dizendo de outro modo, tem muitas pessoas, principalmente homens escrevendo textos bonitinhos para serem lidos e discursos politicamente corretos para apreciarem, mas no privado e no seu íntimo as relações ainda continuam turvas, violentas, eurocêntricas, bem machistas e homofóbicas. Esse é o reflexo do jogo cínico e cênico performático da sociedade colonialista brasileira enraizado nas relações individuais e coletivas, objetivas e subjetivas, pessoais e interpessoais, públicas e privadas.

Apesar de ser considerado um crime e grave violação dos direitos humanos, a violência contra as mulheres ainda é muito comum, corriqueira e acontece em qualquer espaço, lugar e grupo social. A cada cinco minutos uma mulher é agredida no Brasil. Mais da metade das mulheres violentadas cotidianamente, são negras entre crianças, adolescentes e idosos. E mais de 50% dessas já sofreram algum tipo de violência física ou foram violentadas psicologicamente, assassinadas, estupradas, assediadas ou sofreram abuso verbal, físico, sexual, moral, patrimonial e emocional em público ou no privado, sem contar as mulheres que estão fora das estatísticas e que adoecem e/ou morrem em decorrência de relacionamentos abusivos oriundos de vínculos afetivos, trabalhistas, do tráfico de pessoas, cárcere privado, dentre outros, todos decorrentes das desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres, pautados pela intersecção do racismo, do machismo, da mitologia burguesa e da desigualdade econômica. Este tipo de violência tem classe, faixa etária, gênero e cor.

Há uma cultura que informa e forma as pessoas, por vezes de maneira distorcida e comprometida com a reprodução do racismo e do machismo, seja de forma objetiva e subjetiva, individual ou coletiva, ambos são estruturas que estruturam as relações, produzindo, reproduzindo e atualizando as opressões, de maneira que se confunda nas relações com atitudes e pensamentos normais, naturais, comportamentos esperados da convenção social entre as pessoas.

Muitas vezes há uma negação dessa opressão, uma recusa a aceitar, mas somente quem sofre as consequências na pele sabe expressar aquilo que se vive. Sabe identificar o olhar de repulsa, a expressão de reprovação, a insinuação sutil, a rebeldia escancarada, o ultraje seguido de ofensas cotidianas. O pior de tudo isto é perceber o quanto somos receptivos e condizentes com essas opressões, o quanto ainda há uma solidariedade, uma cumplicidade com tais agressões e o quanto há uma recusa para refletir sobre o impacto negativo dessas estruturas, o racismo e o machismo; estruturas porta vozes da homofobia e outras discriminações correlatas.

Assim como a seguridade da mulher garantida por direitos e políticas públicas, a educação é um dos caminhos para (re)educar pessoas na perspectiva da equidade. Precisamos encarar este debate como um exercício da cidadania, dos direitos e deveres de todos, mas sobretudo, como um direito à educação, à diferença e à igualdade.

Educar para a diversidade, educar para as relações étnicas, raciais e culturais, neste sentido, é considerar a inclusão da corporeidade epistêmica, lúdica e identitária das pessoas com ou sem deficiência e suas relações homoafetivas, sexuais, religiosas, de classe e de outros pertencimentos. Educar nesta perspectiva é romper com essas estruturas historicamente construídas estabelecendo processos educativos que oportunizem tais rompimentos, revisões e transformações dessa cultura opressora. A educação não se faz sem as pessoas e se faz em qualquer lugar, seja na escola ou fora dela, mas todos, todas as pessoas precisam refletir e exercitar sobre.

Logo, discutir gênero e poder é um dever também do homem; assim como, compreender e combater o racismo deve ser compromisso também das pessoas brancas; tanto a homofobia quanto a sexualidade precisam ser pauta das discussões de pessoas heterossexuais e assexuais, sobretudo, a intolerância religiosa e a xenofobia devem ser discutidas e combatidas por todos. O protagonismo é desses grupos oprimidos, mas o diálogo deve estar entre todos, pois tais demandas são retratos das assimetrias sociais, logo é de responsabilidade de todas as pessoas desconstruir a operacionalização prática e representativa dessas discriminações.

Ainda assim, refletir sobre tal questão não deve ser o único passo. As pessoas, principalmente os homens precisam encarar essa reflexão como um exercício prático e diário para a vida toda. Encarando o racismo e o machismo como doenças sociais infecciosas de enfretamento ininterrupto.  Preconceitos e discriminações decorrentes dessas categorias são as bases da violência que presenciamos a vida toda. E não haverá uma sociedade equânime, mais justa e igualitária se de fato não considerarmos as intersecções dessas e de outras categorias de análises sociais. Não se pode repetir o mesmo erro egocêntrico ao escolher somente uma categoria de análise em detrimento da outra e tentar explicar ou combater a violência ou criar políticas públicas somente por um único e exclusivo prisma idealista. Assim, como outras categorias, o Machismo, a homofobia e o racismo estruturam essa sociedade!!!

Sem dúvida, ser mulher negra neste mundo, principalmente no Brasil é acordar e ter que lidar com essa violência, mas não somente isso. Ser negra e mulher é protagonizar nossa história como todo o ônus e o bônus que ela nos proporciona, por outro lado é trazer toda nossa ancestralidade para lutar conosco não somente para sobrevivermos, mas também para vivermos com qualidade e bem-estar nessa vida. Nossa existência nos importa e muito, somos a base de constituição de nossas comunidades. E para não adoecermos neste mundo caótico, aprendemos a florescer superando os espinhos e arrancando da terra as ervas daninhas. Aprendemos a cultivar hoje para colher amanhã!

E você, quer tornar o mundo num lugar melhor? Comece reduzindo a injustiça que comete ao tratar a mulher como objeto, ao objetificar suas relações, ao ser conivente com piadinhas racistas, machista, xenófobas, intolerantes e homofobicas! Seja respeitoso! Isto não é somente obrigação, é condição sine qua nom para ser uma pessoa minimamente decente.

Saudações afro!

Por Tatiane Souza, Congadeira, Pedagoga e Pesquisadora Afro-Diaspórica.

Tatiane Souza é Congadeira do Terno de Congada Chapéus de Fitas, Pedagoga, Produtora Cultural, Professora, Mestre em Educação pela UFSCar, Doutora em Ciências Sociais pela Unesp, idealizadora e coordenadora do AKOMA – Grupo de Estudos e Pesquisas em Africanidades, Culturas, Diversidades e Memórias da Unesp/Araraquara. https://www.instagram.com/afritati/

Notícias Recentes

Participe de nosso grupo no Telegram

Receba notícias quentinhas do site pelo nosso Telegram, clique no
botão abaixo para acessar as novidades.

Comments

No posts to display