Por Shenia Karlsson
Desde de que a luta antirracista no Brasil ganhou proeminência, pessoas negras de vários segmentos entenderam a necessidade de amplificar a discussão sobre o racismo, assim como a importância da denúncia através da disseminação das informações. É possível observar muitos artistas, influenciadores, atletas, políticos e pessoas em posição de destaque utilizando a própria visibilidade em prol dessa causa, o que é muito bom num país carente de representatividade positiva de pessoas negras.
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Nota-se hoje muitos exemplos de pessoas negras que cada dia ganham destaque, e aos poucos vamos construindo possibilidades de normatizar a presença de negros nos mais variados espaços. É claro que em termos de quantidade ainda é ínfima nossa presença nos espaços estratégicos, visto que somos mais da metade da população brasileira. No entanto, o combate está sendo feito através do discurso, da produção intelectual, das imagens, das artes e de todas as formas possíveis, afinal, temos urgências subjetivas enquanto um coletivo que até pouco tempo atrás sobrevivia num completo estado de inanição.
Por outro lado, muitos dos nossos irmãos e irmãs que a pouco tempo atrás estavam aliançados com a branquitude – e muito confortáveis por assim dizer, viram um espaço interessante para finalmente falar de suas dores, de suas necessidades e de seus enfrentamentos contra o racismo. Os mais espertos aproveitam para angariar capital social. Aqui refiro-me a pessoas negras de destaque, de influência e notoriedade, formadores de opinião, vistos como modelos para milhares de pessoas negras nesse país. Embora trate-se de pessoas, a visibilidade carrega em si uma responsabilidade maior, ao passo em que a postura e a atitude serão observadas.
Nosso país é extremamente controverso, especialmente quando o assunto é a construção da subjetividade negra, processo esse permeado de interdições, faltas, descontinuidades, mecanismos de negação e por consequência, a distorção dos afetos. Estamos perdidos já faz tempo, e a luta para viver em consonância com o que realmente nos faz sentido parece uma estrada longa e tortuosa. No entanto, a visibilidade tem um preço interessante, a cobrança. Frequentemente, pessoas negras influentes são convocadas a assumir responsabilidades, um comprometimento maior com sua comunidade, a ter atitudes condizentes com seus discursos. A exemplo disso, podemos destacar as relações interraciais, assunto em constante tensionamento e alvo de duras críticas.
Recentemente o cantor e ator Seu Jorge, durante sua participação no programa Roda Viva, foi indagado por uma jornalista negra como ele encara a relação interracial, as críticas sobre ter tido companheiras brancas e se já tinha se relacionado com mulheres negras. A resposta foi interessante, ele isentou-se de responsabilidade mesmo num lugar de privilégio em que poderia escolher dividir sua “sabedoria” e “bom papo” com uma mulher de sua etnia, sem contar em dividir recursos financeiros dentro de uma comunidade jogada a toda sorte de escassez, experiência essa bem conhecida pelo artista. O artista não entende, e talvez nem queira entender sua responsabilidade enquanto um homem negro que influencia outros homens negros num país racista como o Brasil.
É bem verdade que não podemos colocar na conta dos negros o ônus das relações interraciais no Brasil, sabemos que é uma herança ingrata, uma tentativa da extinção do povo negro e foi política de estado. A dimensão psicológica do racismo contribuiu com a introjeção da ideia de depositar afeto em figuras de opressão, os brancos, e ainda sentir-se confortável como se fosse um prêmio social. O racismo é mesmo um crime perfeito, mas o golpe taí, cai quem quer. Hoje, já não há mais desculpas, as informações servem para nos provocar reflexões importantes e adotar ações em prol de nossa existência enquanto povo negro.
Este artigo é sobre um tipo de responsabilidade não muito abordado em nossa comunidade mas que faria toda diferença em nossos processos de construção de negritude e consequentemente avanços em nossas pautas, a RESPONSABILIDADE RACIAL. Mas, afinal, o que é responsabilidade racial?
O processo de construção de negritude é dinâmico e constante, se dá concomitantemente com o processo de construção de identidade, ou seja, um processo em aberto. Nele, estão contidos vários fenômenos interessantes, dentre eles a rejeição ao ideal de ego branco,a descolonização da mente e dos afetos e o rompimento com o pacto narcísico branco. Na medida em que a consciência racial avança acontece um redimensionamento dos afetos, visto a mudança de nosso mundo interno em que as necessidades básicas mudam e caminham em direção ao que realmente faz sentido.
Na medida em que somos capazes de ressignificar a nós mesmos, nossas interações, experiências e principalmente nossos afetos – capital importante e sustentáculo do racismo, torna-se quase inviável privilegiar alianças de fidelidade com figuras de opressão, seja a natureza que for. A partir disso, nasce a capacidade real de auto amor e a identificação positiva com sujeitos semelhantes a nós. Dito isto, a responsabilidade racial seria um estado constante de vigilância a fim de evitar o sequestramento de si, uma ética existencial, um compromisso com o processo de construção de uma negritude saudável e livre. É um processo doloroso porém libertador. Pessoas negras que adotam um discurso antirracista mas que no privado sentem-se mais confortáveis e aliançarem-se com pessoas que representam figuras de opressão, é um indicativo que o processo de construção de negritude não vai nada bem. Estamos tratando de negociar a própria existência, e quando negocia-se o inegociável, não estamos livres internamente.
A responsabilidade racial é a forma mais eficaz de transformar o discurso em prática diária, um caminho de fortalecimento individual e coletivo. A responsabilidade racial é uma via interessante de construir um pacto negro conciso, robusto e saudável enquanto coletivo. O social atravessa o privado, o que está fora está dentro. A luta antirracista deve adotar a responsabilidade racial como componente básico a fim de assegurar nossos avanços enquanto pessoas negras num país que até a pouco tempo atrás, tudo nos negava. A ética negra sem responsabilidade racial é inviável. O convite que fica é, descolonize já os seus afetos, esse é o primeiro passo para adotar a responsabilidade racial.
Shenia Karlsson é Psicóloga Clínica, especialista em Diversidade, Diretora de Departamento do Instituto da Mulher Negra de Portugal e Co Fundadora do Papo Preta.
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