
Passados 135 anos desde que Deodoro da Fonseca instituiu famoso decreto demarcando fronteiras entre Estado e religião, entre interesse público e interesse religioso, o sistema jurídico e parte da jurisprudência permanecem apegados ao cristianismo compulsório herdado do período colonial e tratado ainda hoje como religião oficial de Estado.
É certo que a primeira Constituição republicana, a mais laica de todas as constituições, por assim dizer, inspirou fortemente a Constituição vigente, mas é também verdadeiro que frequentemente a proteção do sentimento religioso é tratada como exclusividade de um único segmento num país em que o IBGE cataloga milhares de expressões religiosas, sem esquecermos dos 10% de brasileiros ateus ou agnósticos.
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Basta observarmos a menção a Deus no preâmbulo da Constituição Federal, a fixação de crucifixos em espaços públicos, a previsão do uso da Bíblia nos regimentos das casas legislativas, a mensagem religiosa nas cédulas do real ou a proeminência dos feriados religiosos, leia-se cristãos.
No âmbito tributário, é visível a elasticidade atribuída à imunidade tributária das entidades religiosas, alcançando patrimônio, renda e serviços.
Entre imunidades e isenções, desonera-se o IPTU – Imposto Territorial Urbano (imóveis próprios ou alugados); ITR – Imposto Territorial Rural; IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores; Imposto de Renda; ITCMD – Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação. Em determinados estados e municípios há também benefícios incidentes sobre ICMS – Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal de Comunicação e ISS – Imposto sobre Serviços.
Na seara das renúncias e isenções, o governo do capitão que trata quilombolas como animais promoveu verdadeira farra perdoando dívidas que custaram aos cofres públicos um prejuízo da ordem de 2 bilhões de reais, além de isentar contribuições previdenciárias sobre “salários” de pastores – alguns deles bilionários, como é público e notório.
Não por acaso, portanto, o recenseamento de 2022 aponta que atualmente o Brasil possui mais CNPJ de organizações religiosas, 70% das quais neopentecostais, do que escolas e hospitais somados.
No plano legislativo, desde as câmaras de vereadores, passando pelas assembleias legislativas e alcançando o Congresso Nacional, proliferam-se as bancadas evangélicas. Lembremos também do republicano critério utilizado pelo capitão para indicar um nome para o Supremo Tribunal Federal: independentemente de notório saber jurídico ou reputação ilibada, bastaria que fosse “terrivelmente evangélico”.
Sim, conforme ele próprio vociferou há poucos dias – “O que vale pra mim é a lei de Deus” – confessando com todas as letras seu desprezo pela legalidade às vésperas de ser julgado pelo STF justamente por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado, entre outros crimes.
Ainda que referida confissão seja tratada pelo processo penal como fato superveniente e, em regra, não possa influenciar o julgamento da ação penal 2.668, trata-se de mais uma prova de conduta pautada pelo embuste, fisiologismo e despotismo.
Para robustecer o quadro de privilégios jurídicos assegurados ao segmento cristão, basta lembrar que crescem as decisões judiciais que asseguram a apenados a remição/redução da pena em razão de participação em evento religioso, curso religioso à distância ou leitura da Bíblia.
À luz desse contexto, não merece qualquer crédito a chorumela segundo a qual pastores estariam sofrendo perseguição religiosa por parte do STF.
Lembremos que o Estatuto de Roma define perseguição religiosa como a “privação intencional e grave de direitos fundamentais”, coerente com definição do Estatuto dos Refugiados – “circunstância de fundados temores de risco à vida ou à liberdade em função de religião”.
No Brasil, a liberdade dos cristãos, notadamente dos neopentecostais é tão ampla que parte deles age impunemente para fazer dos conselhos tutelares ou das escolas públicas uma espécie infame de “puxadinho de templo religioso”.
Era o que faltava, portanto, pretender transformar liberdade religiosa em impunidade penal religiosa.
Impunidade reivindicada, a propósito, para atacar as instituições democráticas tanto quanto para ultrajar e perseguir diariamente as religiões afro-brasileiras, cujos adeptos(as) estes sim têm fundadas razões para temer por sua liberdade e integridade física, psíquica e moral.
Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre e Doutor Direito pela PUC-SP, ex-Secretário de Justiça do Estado de São Paulo (2005-2006), fundador do Jusracial, é autor de “Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial: Teoria e Prática, Vol 1”, Ed. Emó.
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