Por Obalera de Deus*
Assim como a luz do dia afugenta a escuridão, da mesma forma o homem branco desmanchará todos os nossos costumes (Chinua Achebe).
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“A Flecha de Deus”, escrito por Chinua Achebe e “O leão e a Joia”, de Wole Soyinka, foram dois livros que me permitiram viajar pela Nigéria, por terras e culturas africanas igbó e yorubá respectivamente. Estes dois belos livros trazem tantos conhecimentos, sabedorias, costumes de suas tradições. As riquezas de provérbios destas culturas costuram brilhantemente cada página e capítulo e vão dando o tom da viagem.
Por outro lado, permitiram sentir, de maneira especial, o como o sequestro de nossos ancestrais, o racismo, colonialismo e colonialidade nos mantém distantes e estranhos a muitos aspectos da riqueza cultural, filosófica, social, política das sociedades africanas. Dentre muito desses elementos gostaria de pensar sobre o distanciamento e estranhamento cultural que tive ao ler histórias nas quais os personagens possuíam nomes africanos.
Ezeulu, Matefi, Nwafo, Oduche, Akueke, Obika, são alguns dos nomes dos personagens, na língua igbo, presentes em “A fecha de Deus”. Sidi, Lakunle, Baroka e Sadiki, nomes yoruba dos personagens que conduzem nossa viagem pelo “O leão e a Joia”. Certamente, todos estes nomes são desconhecidos por quase todos, para não dizer todos, nós negras/os no Brasil.
Muito me inquietou as dificuldades, por exemplo, de identificar quem era o homem, a mulher, a criança, o filho, o marido, a esposa, bem como, inclusive em gravar o nome de cada um e cada uma, sobretudo no romance de Chinua Achebe, rico em personagens. É impressionante o como, inversamente, ao ler um livro, naturalizamos os nomes de língua inglesa, francesa, espanhola, portuguesa e, se “dé mole”, até nomes alemães e russos. Contudo, somos o país com o maior número de negras/negros, povos de ascendência africana no mundo depois da Nigéria, Estado de onde coincidentemente abrigam ambas as histórias.
Não podemos achar normal que 52% de negras/negros de um país, simplesmente desconheçam nomes de línguas de povos que descendem. Ou então que quando conhecem, acham estranho, zoam e fazem chacota daquelas/es que tem a honra de carregar estes nomes. Exemplo disso, é quando eu me apresento como Obalera (origem yorubá) para uma pessoa e ela franzi o rosto imediatamente, ou então quando entro numa sala de aula de escola pública, no qual mais de 90% dos estudantes são negras/os. O estranhamento, risadas e menosprezo dos estudantes são automáticos. Não sei se conseguem perceber a violência e perversidade do racismo incutida nisso. Não podemos considerar isso normal! Isso tudo me faz lembrar Molefi Asante quando vai falar, em seu livro “Afrocentricidade: a teoria de mudança social”, que a mudança e utilização de nomes de origem africana, geram ao mesmo tempo um processo de rejeição e aceitação. Diante deste processo, Asante também vai pontuar algo que considero muito potente e que queria evidenciar: “o que muda com a mudança de nossos nomes é a maneira como percebemos a nós mesmos e como os outros nos percebem” (2014, p. 47).
Impossível também não lembrar de um trecho do romance “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, que certamente ilustra bem esta ideia de como o próprio nome interfere no processo de identificação e percepção de nós, bem como o nosso desconhecimento e estranhamento está umbilicalmente associado a escravidão e ao colonialismo. Kehinde, personagem principal, é quem conta:
“Nós não víamos hora de desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar para que não pisássemos em terras no Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos de minha avó [Dúrójaiyé]. Ela tinha dito que seria através do meu nome que meus voduns iam me proteger, e que também era através do meu nome que eu estaria sempre ligada à Taiwo [sua irmã], podendo então ficar com a metade dela na alma que nos pertencia”.
Acredito que esta passagem, tão significativa, evidencia a força e importância dos nomes para as tradições africanas, bem como a violência colonial-escravista-racista-cristã implicada na retirada, negação e apagamento dos nomes de origem africana de nossos ancestrais na escravidão e, por conseguinte, a continuidade e atualidade desta violência em nós.
Seguindo estes caminhos, os ensinamentos de nosso intelectual, afroepistemólogo Ògìyán Kàlàfó Olorode (Jayro de Jesus), potencializam ainda mais esta reflexão. Segundo ele, os nomes para a cultura tradicional africana e afrodiaspórica (nas comunidades-terreiro) possuem elementos que configuram a existencialidade do Ser/Pessoa, isto é, constituem o “projeto biomítico-social ancestrálico”.
Esta perspectiva e compreensão acerca do papel e significado dos nomes próprios para culturas africanas e afrodiaspóricas se coloca como uma possibilidade de repensar nossa condição social, nossa forma de Ser e Estar no mundo por meio de nossa própria localização cultural, epistemológica e psicológica negra.
Este movimento, de algum modo, permite que nos reapropriemos de nossas perspectivas e culturas negras, assumindo a nossa centralidade ancestral e histórica, e assim romper com o referencial branco-ocidental que nos relega a um lugar marginal e subalterno. Neste sentido, a utilização de nomes africanos, o ato de nomear nossas filhas e filhos de Oyakemi, Amadi, Akinyi Babatundé e etc. também se apresenta como parte do processo de aceitação, afirmação e pertencimento de nossa identidade e reestabelecimento de nossa humanidade e dignidade negra. Nome é raiz, é história, é pertencimento, é através dele que existimos. Como canta o rapper Thiago Elnino: “Busque sua raiz, vai! Busque a sua raiz, vai! Ou morra pela raiz”
*Cientista social formado pela PUC-RIO, integrante do Coletivo Nuvem Negra e coeditor do Jornal Nuvem Negra
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