Por Roger Cipó *
No começo do ano, um famoso pagodeiro, que fez muito sucesso na década de 90, me chamou no direct para comentar um story. O papo virou conversa via áudio, sobre um artigo que pautava relações interraciais no pagode. Transcrevi: “Cipó, irmão, nós éramos os pretinhos da favela que de um domingo para o outro estava disputando audiência nos principais programas de tv”, e continuou: “De um dia para o outro, a gente tinha tudo aos nosso pés, e antes disso, ninguém dava moral pra gente, entende? Irmão, não eram todos de nós que tinham consciência não. Era um o outro, o resto de nós era só uns pretinhos que tocava por uns trocado, que era preto normal mesmo que ninguém dava moral. Uns caras que se achavam feios e que agora estavam como..?”.
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Em “Peles Negras, Máscaras Brancas”, Frantz Fanon analisa as dinâmicas das relações entre homens pretos e mulher brancas e de mulher pretas com homens brancos. Eu me demoraria explicando, então sugiro que leia e se pergunte como raça determina e hierarquiza as relações? É importante ler Fanon, pois ele ajuda, também a compreender como uma pessoa preta opta por se vincula a uma pessoa branca, numa sociedade em que o racismo a desumaniza, em detrimento da supervalorização da humanidade de pessoas brancas.
“Da parte mais negra de minha alma, através da zona de meias-tintas, me vem este desejo repentino de ser branco. Não quero ser reconhecido como negro, e sim como branco. Ora — e nisto há um reconhecimento que Hegel não descreveu — quem pode proporcioná-lo, senão a branca? Amando-me ela me prova que sou digno de um amor branco. Sou amado como um branco. Sou um branco. Seu amor abre-me o ilustre corredor que conduz à plenitude… Esposo a cultura branca, a beleza branca, a brancura branca. Nestes seios brancos que minhas mãos onipresentes acariciam, é da civilização branca, da dignidade branca que me aproprio.” [Fanon, no capítulo Homem de cor e mulher branca, de Peles Negras, Máscaras Brancas].
Eu não estou dizendo que está errado quem o faz. Não é disso que se trata. Mas se debateremos sobre tal assunto, é preciso entender como a dinâmica está estabelecida.
Pensemos, como se dá a construção afetiva quando as imagens e afetividades de pessoas negras foram sabotadas por animalização, marginalização, hiperssexualização, e sem falar em auto ódio.
É preciso que a gente não perca o racismo como fator determinante de todas as dinâmicas de relações, no Brasil. Raça não é recorte, é fundamento e por isso, atravessará tudo e a todxs. Impactará as dinâmicas, e isso nos obriga abandonar a ideia de individualizar problemas estruturais.
A palmitagem é um problema estrutural do racismo, queiramos ou não.
Antes de ser uma escolha, a negação de afeto de pessoas pretas é construção, e valida o racismo que segue matando de formas letais e simbólicas. Tudo é parte do mesmo projeto, tanto é que a maioria das pessoas brancas irão se opor às pessoas pretas que defendem seus direitos à relação, mas não se incomodam com o impacto do racismo na construção afetiva saudável de parte significativa da sociedade. Até porque, parte disso tem nas pessoas brancas a única possibilidade de humanização ou símbolo de ascensão social, pois é sobre o acesso, é sobre o que está estabelecido pela branquitude que abre concessões, mas não trata em pé de igualdade. Um homem preto nunca será um homem, como o branco é. A mulher preta, nunca será uma mulher como a branca é.
Não é minha opinião. É a aberração social que o racismo criou nas nossas subjetividades nos últimos 400 anos. É ingênuo pensar que séculos de escravização, que definiu a estrutura da sociedade, não definiria também os lugares dos afetos. E é isso que deve ser o centro das discussões sobre relações interraciais.
Por fim, nós podemos achar outros termos se esse parece ofender, mas seja lá qual seja o termo usado, haverá ainda o mesmo movimento de invalidar tais discussões. Seja qual termo usar, qualquer pessoa negra que se lançar para discutir os impactos do racismo na formação afetiva de pessoas pretas será deslocada para o lugar da inveja do ressentimento, como estratégia de apagamento do debate. Além do famoso amor não cor, mas na verdade, tanto tem que é majoritariamente encontrado e válido entre ou com pessoas brancas, em moldes que favorecem apenas pessoas brancas, para a supervalorização de suas humanidades, em detrimento da marginalização das narrativas afetivas pretas.
“Que quer o homem?” Que quer o homem negro? Mesmo me expondo aos ressentimento dos meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem, […]O negro é um homem negro; isso quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo”. [Frantz Fanon].
Quem escreve: @rogercipo é fotógrafo, pesquisa o impacto do racismo na construção da imagem das religiões negras no Brasil, e em seu projeto @olhardeumcipo, propõe a reconstrução de imaginários não colonizados para as tradições negras.
Cipó também é educador, palestrante e consultor pedagógico para uma educação anti-racista.
Idealizador da plataforma TROCATROCA – Diálogos das Masculinidades Plurais, e produz conteúdo sobre o tema e afetividades.
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