Mundo Negro

“Os policiais não nos entendem”: as dificuldades de ser negro e surdo no Brasil

No Brasil, 10,7 milhões de pessoas possuem deficiência auditiva. Desse total, 2,3 milhões têm deficiência severa, de acordo com o estudo feito em conjunto pelo Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda. Dentre os que têm deficiência auditiva severa, 15% já nasceram surdos. 

Ser surdo já é motivo de discriminação, ser negro é motivo de racismo. Um surdo negro possui um duplo preconceito? Para isso entrevistamos* três surdos negros para que possamos compreender e abraçar essa causa. 

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MUNDO NEGRO: Enquanto surdos, qual a maior dificuldade que enfrentam socialmente?

GUILHERME SOUZA: Nem todos os lugares tem acesso a libras, tais como hospitais, cinema, palestras, hospitais, escola, delegacia.

MATHEUS NASCIMENTO: As mudanças são difíceis para a sociedade. As pessoas pensam que é estranho (ser surdo), sempre pensam negativo. E a polícia militar sempre ter dúvida, pensar que sou bandido e eu não sou; provar isso é bem difícil, a falta de comunicação… Eles acham que sou ouvinte. 

ERLIANDRO FÉLIX:  A minha maior dificuldade é a limitação na comunicação, quase sempre falha, na sociedade, por exemplo, eu escrevo o português como segunda língua, mas a pessoa não-surda não entende a minha escrita, além disso, eles, escrevem o português formal e eu não consigo ter a compreensão. 

MUNDO NEGRO: Enquanto negro e surdo, passaram por alguma situação negativa e/ou constrangimento marcante?

GUILHERME SOUZA: A dificuldade de comunicação com a polícia. Infelizmente somos parados por sermos negros e os policiais não nos entendem. 

MATHEUS NASCIMENTO: Um momento marcante foi um policial pedir minha identidade. Eles sempre tem dúvidas de quem sou. A cada dia piora a comunicação e a polícia nunca consegue entender. 

ERLIANDRO FÉLIX: Sim, já me senti constrangido, um dia, fui no seminário dos negros com um intérprete de Libras, me olharam como uma pessoa incapaz.

MUNDO NEGRO: Se sentem abraçados pela luta do movimento negro dentro das questões relacionadas a deficiência auditiva? 

GUILHERME SOUZA: Me sinto bem pois tenho amigos e familiares dentro desses grupos (sociais).

MATHEUS NASCIMENTO: Tenho poucos amigos e tenho minha namorada, que também é negra. Agradeço muito ao meu melhor amigo que me apoia muito. 

ERLIANDRO FÉLIX: Não, porque não sou deficiente auditivo, mas sim surdo, tenho a minha língua e a minha cultura. 

MUNDO NEGRO: Como podemos, efetivamente, mudar a situação do negro surdo no Brasil?

GUILHERME SOUZA: Na minha opinião é possível mudar a situação do Brasil unindo os surdos e negros na luta contra esses preconceitos para um futuro melhor. 

MATHEUS NASCIMENTO: É difícil eles (a sociedade) ajudarem. Ainda tem o racismo e nós, surdos, ainda sofremos com a acessibilidade. Acho que os surdos (mudaremos) lutando juntos contra o racismo 

ERLIANDRO FÉLIX: Então, os negros precisam conhecer a comunidade surda e o movimento dos negros surdos, além de pensar como acessibilidade do acesso dos negros surdos no mundo negro não-surdo. Pensar a política pública foco nos negros surdos.

MUNDO NEGRO: Qual maior erro os ouvintes cometem que fere a autoestima e inclusão do surdo?

GUILHERME SOUZA: (Não respondeu)

MATHEUS NASCIMENTO: Os ouvintes acham que os surdos não são capazes. Mas nós, surdos, somos capazes sim. Acham que somos um problema. A sociedade precisa ter empatia com os surdos. 

ERLIANDRO FÉLIX: O pensar que os negros são iguais, que os surdos são iguais, que os deficientes são iguais, que os cegos são iguais. 

Entrevistamos, também, a Karol Lopes, mulher negra e intérprete de LIBRAS. 

MUNDO NEGRO: O intérprete de Libras desempenha um papel importante na inclusão do deficiente auditivo. Como leigos, como podemos ajudar? 

KAROL LOPES: Bom, eu sempre defendo que não temos que ajudar os surdos. Quando alguém vê essa frase de imediato, é assustador. Mas vou explicar: as pessoas com deficiência não precisam de ajuda. Elas precisam que seus direitos sejam garantidos.  Os brancos não têm que ajudar os negros. Têm que garantir que eles tenham uma vida plena com acesso a tudo o que deveria ser seu por direito. E isso está claro para nós. Mas sempre que falamos sobre pessoas que têm alguma deficiência, queremos ajudar. Eu sei que a intenção é boa, mas é um discurso capacitista e assistencialista que coloca a pessoa com deficiência num lugar de dependente das pessoas vistas socialmente como “normais”. É assim que vejo como precisa ser nossa relação de modo geral.

É claro que existem dificuldades por causa da surdez. Mas as maiores dificuldades que percebo que os surdos encontram no dia a dia são as pessoas. As maiores barreiras são atitudinais. Se a gente de fato pensasse no próximo, as diferenças entre nós seriam só um detalhe. Se nós assumirmos pequenas atitudes, já conseguimos melhorar significativamente as questões de acesso. A gente só precisa parar nas mínimas coisas do dia a dia e pensar: “será que todas as pessoas estão tendo acesso a isto?”.

Um exemplo muito simples, mas que pouquíssimas pessoas prestam atenção são as legendas. Os surdos não têm acesso aos filmes nacionais ou infantis, porque entende-se que se aquele material está em português, todo mundo consegue entender. Os surdos não têm acesso a muitos vídeos das redes sociais porque as pessoas não legendam. Uma coisa que tenho batido muito na tecla é sobre stories. Eu sei que dá trabalho, mas não toma tanto tempo assim legendar o que a pessoa está falando. Legenda é o ideal? Não. Mas já é alguma coisa. Já é um bom começo! A gente precisa parar de sentir medo do diferente e se aproximar. É só se aproximando, tendo contato, que vamos conseguir entender um pouco melhor o que essas pessoas vivem. A maior “ajuda” que podemos dar é apoiar as lutas sociais para a garantia de direito de todas as pessoas.

Intérprete de LIBRAS Karol Lopes / Acervo pessoal

MUNDO NEGRO: Enquanto intérprete de libras e mulher negra, o que observa na relação da sociedade para com o negro surdo?

KAROL LOPES: Eu comecei a dar uma atenção maior a esta temática quando atuava como intérprete numa escola e um dia, numa aula de artes, a proposta era fazer um autorretrato e as meninas pretas se desenharam loiras dos olhos azuis. Aquilo mexeu muito comigo, porque eu estava passando pelo meu processo de aceitação e ver aquela cena doeu. Foi aí que eu percebi como as pautas raciais não estavam chegando em todos os espaços.

A gente sabe que esse não é um assunto muito bem vindo em muitas casas. Então imagina como se dá esse processo numa família onde sequer há comunicação com o filho surdo.

Djamila Ribeiro fala no livro dela “O que é lugar de fala” sobre conceito de “não lugar”, que diz respeito ao fato de as pessoas terem seu direito de acesso restrito a determinados lugares e/ou camadas sociais devido às estruturas preestabelecidos. Ela apresenta uma hierarquia social onde a mulher preta fica em último lugar, depois do homem branco, mulher branca e do homem negro. A mulher negra ocuparia então um não lugar, pois seria o outro do outro (homem branco, mulher branca e homem negro). Na relação com pessoas pretas surdas eu percebo que isso se agrava ainda mais (em outras relações também). Porque essa dupla diferença faz com que essas pessoas estejam cada vez mais abaixo nessa hierarquia.

Durante minhas pesquisas, o que tenho percebido é que há um apagamento da identidade negra de pessoas com deficiência. Porque não são assuntos amplamente discutidos. Quando você pesquisa artigos, teses ou coisas do tipo, a maioria das produções encontradas são focadas na deficiência. Como se pessoas com deficiência estivessem isentas de sofrer por outras questões sociais como cor, classe social, gênero, sexualidade, entre outras. Mas também fico muito otimista ao perceber que produções com esta temática vêm ganhando força e crescendo. É importante que esses assuntos sejam discutidos e chegue nos lugares mais vulneráveis da sociedade. Existe a organização de um movimento negro surdo que vem se tornando cada dia mais forte e estruturado. Esse movimento precisa de visibilidade. Ele precisa ser visto, compreendido e apoiado.

*A entrevista contou com a ajuda de Lívia Maria Queiroz, do “1 Minuto de Libras”, estudante de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) e com Karol Lopes, intérprete de LIBRAS negra. 

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