
Texto: Viviane Elias
Sabe aquele dia de rotina que todas as mulheres pretas que fazem o seu corre ao longo da semana tiram para fazer o combo cuidar de si, da casa, dos seus afetos, tudo junto e misturado, ouvindo o seu samba e sem querer guerra com ninguém? Então, no meio da execução do meu combo semanal, o algoritmo me entrega o Grupo Arruda e o efeito choro-e-latinha-abrindo-sozinha aconteceu automaticamente ao ouvir o álbum Flores em Vida: Arruda Canta Cléber Augusto.
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A skin do mundo corporativo foi ativada imediatamente quando percebi a conexão entre o álbum do Grupo Arruda, de 2021, e o projeto fantástico do Spotify, de 2025. Cada um à sua maneira: o Grupo Arruda, lá do samba do Maria Zélia, com a tecnologia periférica, e o Spotify, por meio da tecnologia hypada da IA, fizeram o que deveríamos ter feito há muito tempo: devolver a voz ao Cléber. E aqui vai toda a minha gratidão ao Grupo Arruda, que me fez esgotar, em duas horas, o estoque de latinhas programado para o final de semana, ouvindo: “Eu não sei o que é que vou dizer, quando chegar, e o sol raiar, você brigar por me esperar, me censurar, desta vez coberta de razão…”.
Voltando ao texto: estamos falando de um país que não reconhece os próprios gênios. E que precisa da tecnologia (ora, ora, parece que o jogo virou, não é mesmo?) para lembrar quem nos deu tanta beleza em forma de samba. Sim, estou falando de Cléber Augusto, violonista, compositor e uma das vozes fundadoras do grupo Fundo de Quintal. Se o nome não te soou familiar, não se culpe.
A gente, enquanto sociedade, foi ensinada a esquecer as potências pretas, mesmo aquelas que escreveram “hinos” que você canta até hoje sem saber a origem. “O Show Tem Que Continuar”, “Só Pra Contrariar”, “A Batucada dos Nossos Tantãs”, “O Mapa da Mina”, “Oitava Cor”, “Você Quer Voltar”, entre tantas outras, têm a assinatura dele. Foram mais de 500 composições e, ainda assim, o racismo estrutural o empurrou durante muitos anos para o esquecimento e uma doença degenerativa chamada disfonia espasmódica, que afetou sua laringe e o impediu de cantar por quase duas décadas.
A empresa Spotify, com apoio da família e especialistas em tecnologia, usou a IA para recriar a voz do artista a partir de gravações antigas e nos devolveu a possibilidade de ouvir Cléber cantando novamente, potencializando o alcance do que o Grupo Arruda começou em 2021. Sim, a tecnologia, que muitos dizem que vai tirar nossos empregos, hoje devolve uma parte essencial da cultura preta brasileira, não somente para nós, brasileiros, mas para todo o mundo. Foi como ver um pedaço da história preta sendo refeito e restaurado. Um Brasil que ousa ouvir de novo os seus maiores mestres esquecidos.
A verdade é que qualquer tecnologia pode ser ferramenta de opressão ou de libertação. Tudo depende de quem está programando, de quem está usando e, principalmente, de quem está sendo lembrado. Dados da PwC mostram que, até 2030, a IA poderá agregar até US$ 15,7 trilhões à economia global, sendo a saúde uma das áreas com maior potencial de impacto. A IA já tem sido usada em diagnósticos precoces de câncer, predição de epidemias, reabilitação motora e criação de próteses inteligentes. Imagine isso aliado à recuperação de vozes, histórias e memórias pretas que o tempo e o racismo estrutural tentaram apagar?
Enquanto a IA cura vozes, o Brasil ainda se recusa a escutar. Porque é mais fácil viralizar tretas sobre colorismo no TikTok do que reconhecer quem realmente construiu nossa cultura. E vamos ser francos: tem muita gente ganhando dinheiro dividindo a gente. O caso de Cléber Augusto é um lembrete poderoso de que a tecnologia, quando usada como meio, e não como fim, pode ser um instrumento de cura, memória e justiça cultural. Enquanto perdemos tempo em discussões rasas sobre se a IA vai “roubar nossos empregos”, a verdade está em outra pergunta: como ela pode nos devolver o que a desigualdade nos tirou? Por que não reprogramar o futuro com os nossos nomes no código-fonte?
Para debatermos o futuro preto coletivo em tecnologia, precisamos discutir, de forma correta, como as respostas a questionamentos sobre como a IA pode potencializar talentos pretos, como podemos formar profissionais pretos para trabalhar com IA e como podemos usar essa tecnologia para contar a nossa história, a verdadeira, não a reborn que foi editada pelos “os” de sempre.
Cléber é só um entre tantos nomes pretos que merecem ser lembrados, não por nostalgia, mas por legado. A IA pode ser uma aliada nessa recuperação da história real, da música, da cultura, da ciência preta e, para isso, precisamos parar de ter medo da tecnologia e começar a dominá-la. Se queremos ocupar o topo das empresas, dos algoritmos e das narrativas, precisamos sair do medo e entrar no protagonismo.
O show tem que continuar, sim, mas com um novo roteiro. E se for para usar a IA ou qualquer outro tipo de tecnologia, que seja para amplificar nossas vozes, não para silenciá-las mais uma vez. Que a batucada dos nossos tantãs ecoe nos algoritmos. Que o mapa da mina inclua os nossos nomes. E que cada samba que o Brasil tentou esquecer seja lembrado em estéreo, com voz restaurada e memória viva, afinal, como já dizia Cléber, “ninguém vai calar esse nosso canto”.
Eu estou indo porque preciso voltar ao meu combo e abrir uma nova latinha, porque agora está tocando Oitava Cor. Salve Cléber Augusto, Grupo Arruda e todos envolvidos neste projeto do Spotify. Este brinde é para vocês e para a tecnologia lindamente utilizada como meio por vocês.
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