Texto: Shenia Karlsson

A frase icônica da Angela Davis realmente soa como um único direcionamento possível quando pensamos em construir uma sociedade mais justa e equânime. “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. Sábias palavras de uma
mais velha que realmente sabe o que pronuncia. Essa frase virou um mantra na luta contra o racismo e palavras de ordem dos movimentos e coletivos negro. Como essa luta não é só de quem sofre mas de quem criou o problema, podemos observar um número significativo de brancos dispostos a entender e colocar em prática atitudes condizentes com um antirracismo ético. No entanto, tenho observado relatos e situações em que brancos autodeclarados antirracistas naturalizam atitudes racistas contra negros em diversos
espaços.

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Nesse artigo, em comemoração ao Mês da Consciência Negra, vou abordar um fenômeno muito frequente, “as atitudes racistas praticadas por brancos que se autodeclaram antirracistas”. Esse tipo de violência velada e carregada de perversão é fonte de
adoecimento psíquico especialmente para negros que dividem espaços com os ditos “aliados”. Nossas narrativas têm sido sequestradas historicamente por grupos que se utilizam de nossas lutas e construções, seja para o esvaziamento, seja para benefício próprio. Não é difícil notar que o antirracismo vem sendo utilizado por muitos brancos quase como um crachá, a fim de reforçar uma suposta boa intenção e engajamento com o intuito de angariar vantagens e fazer a manutenção dos privilégios. Essa instrumentalização nociva enfraquece todo o esforço empreendido por aqueles que realmente estão comprometidos e pior, acomete pessoas negras e racializadas de uma forma sutil porém muito violenta.

A disputa dos espaços e o adoecimento psíquico

Com o avanço das lutas sociais e a presença de pessoas negras em alguns lugares estratégicos – mesmo que em menor escala, os brancos tem tomado alguns caminhos e os mais polares são: o estreitamento do pacto narcísico a fim de proteger privilégios (a
exemplo disso o aumento do conservadorismo e o discurso de ódio) e o engajamento com a luta antirracista (provém do entendimento sobre a própria responsabilidade em termos de privilégios). Entretanto, existe um grupo de brancos (que talvez seja a maioria, não
sabemos) impregnados em vários espaços de poder, apossando-se do discurso antirracista de forma instrumental cujo o único intuito é perpetuar a manutenção da estrutura racista e, em consequência disso, seus privilégios sem que possam ser questionados.

O autor Dany-Robert Dufour em seu conceito o perverso puritano pode servir para elucidar as verdadeiras intenções de brancos que tomam para si o discurso antirracista sem ter uma postura crítica diante de suas interações com pessoas negras e/ou racializadas quando diz que “ o perverso (o branco) por ele abrigado desfruta sadicamente do neurótico puritano (o negro) ,enquanto o puritano suporta o perverso, vale dizer, dele desfruta masoquisticamente”. Interagir com pessoas negras sem repensar seu lugar social e de
opressão pode ser caracterizado como uma atitude perversa, tendo em vista que atitudes racistas veladas e inconscientemente intencionais reproduz lógicas de opressão e sofrimento psíquico nas vítimas em questão, os negros. Abuso de poder, objetificação,
assédio, invisibilização, práticas de silenciamento atitudes incompatíveis com um antirracismo ético e sério.

O racismo desmentido

A partir do conceito de desmentido de Sandor Ferenczi, a psicanalista Jô Gondar discorre sobre o racismo desmentido em que pessoas brancas impõem situações controversas às pessoas negras causando grande confusão. Por um lado, se diz não racista, por outro, continua expressar comportamentos racistas e discriminatórios, e quando questionados tendem a desvalorizar o peso e a seriedade de tal comportamento desconsiderando o dano e o prejuízo causado às pessoas negras, prejuízo tanto material quanto simbólico. O discurso antirracista funciona aqui como uma desculpa, ou até como uma permissão para que tais comportamentos não sejam repensados.

Somos sujeitos compostos de experiências, quando somos forçados a nos submeter a situações em que somos atacados e vilipendiados, e sem o direito de expressar nossa dor e indignação, somos imediatamente reduzidos a não sujeitos, não humanos. Tais
circunstâncias adoecem psiquicamente e emocionalmente.

Repensando o Antirracismo

Estamos num processo de avanço, não há como retroceder. A luta antirracista é um remédio numa sociedade que padece do grande mal chamado racismo e, a despeito disso deve ser protegida a todo custo. Os Usurpadores sempre existirão, nos cabe a denúncia, o
enfrentamento e o desmascarar dos mal intencionados. Para a nossa saúde individual e coletiva é preciso cobrar, discutir e refletir criticamente. As atitudes racistas merecem resposta a altura pois estamos num ponto onde mudanças radicais devem ser lançadas, em
coletivo. O combate às ervas daninhas embrenhadas na luta antirracista requer um conjunto de práticas de enfrentamento basedas no fortalecimento interno do indivíduo assim como nossas redes de apoio e segurança. Violências veladas também adoecem, minam a
alma, atingem nossa potência e nos enfraquece, e acreditem, essa é a real intenção. Desenvolver a capacidade de reconhecer os verdadeiros aliados, identificar nossas figuras de opressão e descolonizar os afetos são estratégias importantes de enfrentamento contra
o racismo.

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