Texto: Shenia Karlsson
Recentemente, foi revelado que a artista Ludmilla decidiu não aceitar um convite para participar de um programa bastante famoso atualmente, chamado “De frente com Blogueirinha”, apresentado por Bruno Matos, o criador da mencionada personagem. A justificativa para essa recusa foram os comentários inapropriados feitos pelo apresentador sobre a cantora em um momento em que ele ainda era uma figura em ascensão nas redes sociais.
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Em 2019, Ludmilla foi agraciada com o Prêmio MultiShow na categoria de ‘Melhor Cantora do Ano’ e, ao subir ao palco, foi recebida com gritos, vaias e assédios de diversas formas, com ênfase em manifestações racistas. No dia seguinte, nas redes sociais, a Blogueirinha postou um vídeo afirmando que Ludmilla “deveria ser grata pelas vaias; caso contrário, nem seria lembrada”. Naquele momento, Ludmilla assistiu ao vídeo, respirou fundo e permaneceu em silêncio.
O artista se manifestou nas redes sociais pedindo desculpas, embora tenha minimizado o episódio como uma simples “discussão” entre fãs na época, e alegou não ter percebido a gravidade de suas ações. A humilhação que Ludmilla enfrentou publicamente durante o evento, somada à desumanização provocada pela Blogueirinha através do vídeo que foi divulgado horas após aquela noite infeliz resultou em uma experiência extremamente dolorosa para a cantora. Nesta semana, ela compartilhou seus sentimentos, os gatilhos e a tristeza que esse episódio traumático lhe trouxe. Embora a Blogueirinha tenha esquecido, Ludmilla não se esqueceu.
Frequentemente, escuto de meus clientes em meu consultório relatos sobre experiências traumáticas que vivenciaram anteriormente e o reencontro com aqueles que as provocaram. No que diz respeito ao racismo, há inúmeras narrativas de constrangimento público, assédios, agressões psicológicas e físicas desde a infância, e todas essas vivências dolorosas permanecem armazenadas e são reativadas em situações análogas. Quando se trata de racismo e como nos faz sofrer, temos o compromisso ético de estar com a memória em punho. Perdoar se quiser, esquecer nunca.
A intelectual e multiartista Grada Kilomba, em sua obra “Memórias da Plantação”, enfatiza a relevância de praticarmos a descrição de nosso dia a dia e das violências que nos afetam, utilizando a primeira pessoa do singular. Falar sobre nossas dores de forma clara e audível é um ato político. Em outras palavras, quebra o silêncio que nos envolve.
Ela nos instiga ao afirmar que “no universo conceitual branco, parece que o inconsciente coletivo das pessoas negras está programado para a alienação, a desilusão e o trauma psicológico”, sendo assim, é nosso dever subverter tudo isto.
É nesse pacto compartilhado, sustentado não apenas por brancos, mas também por negros e racializados, que se encontra a autorização para desmerecer publicamente uma jovem negra, transformar seu momento de alegria em uma cena de miséria e considerar tudo isso aceitável. E sabemos que negros que ascendem economicamente não estão isentos de sofrer racismo como a própria Neusa Santos salientou em seu livro Tornar-se negro, não é?! Muito pelo contrário, a experiência pode até intensificar-se, no caso da cantora, submetida ao escárnio sistematicamente.
A cantora Ludmilla tem se destacado não apenas por seu talento musical, mas também por sua postura firme e corajosa diante do racismo. Em situações dolorosas, ela utiliza estratégias de enfrentamento que servem de exemplo para muitos. A memória é um componente crucial nesse processo. Ao lembrar e honrar as histórias e experiências passadas, Ludmilla reforça a importância de reconhecer e aprender com o passado para que erros semelhantes não se repitam e dores não sejam revividas. Rejeitar um convite para uma entrevista com quem um dia te desumanizou é um direito. É legítimo!
Essa prática de rememoração ajuda a estabelecer os limites do que podemos ou não aceitar e consequentemente, construir uma identidade coletiva mais forte e resiliente, capacitando indivíduos e comunidades a se oporem a injustiças de maneira informada e consciente. A denúncia, por sua vez, é uma ferramenta poderosa para expor e combater o racismo. Sendo assim, a memória e a denúncia são componentes fundamentais para o processo de cura de pessoas negras.
Ludmilla tem utilizado sua plataforma para trazer à tona situações de discriminação que muitas vezes passam despercebidas ou são silenciadas. Ao chamar a atenção do público e da mídia, ela exerce uma pressão necessária para que mudanças sociais sejam implementadas e para que os perpetradores sejam responsabilizados por seus atos.
Esses componentes, a memória e a denúncia, são fundamentais não apenas para a resistência, mas também para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Através de seu exemplo, Ludmilla inspira outros a também se posicionarem, mostrando que a luta contra o racismo é um esforço coletivo que requer coragem, persistência e solidariedade.
Nunca negocie sua existência, nossa saúde mental agradece!
Shenia Karlsson é Psicóloga Clínica, Especialista em Diversidade, Negritudes e Racialidades, Colunista, Escritora e Palestrante. Mediadora de conflitos raciais, consultora em DI&E e contenção de crise em situação de racismo nas empresas. É Mediadora Familiar no reality “Ilhados com a Sogra” na Netflix.
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