Kemi Salami, 39, médica oftalmologista e iyalorixá na religião tradicional iorubá no Brasil, dedicada ao culto de Ifá, nasceu destinada a cuidar e curar as pessoas. Com duas funções que necessitam de muita responsabilidade, ela sente que está cumprindo a sua missão e consegue unir o trabalho de saúde e de resgate ancestral para melhorar os atendimentos.
“Acredito que o que mais levo do axé para o consultório é a capacidade de efetivamente ver, escutar, acolher e entender meus pacientes. Isso pode mudar tudo quando um paciente vai receber uma notícia ruim, como um diagnóstico de cegueira irreversível, por exemplo”, disse Dra. Kemi, propritária da clínica A Beleza do Olhar, em entrevista ao Site Mundo Negro, em especial ao Dia do Médico, celebrado hoje, 18 de outubro.
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A iyalorixá do Oduduwa Templo dos Orixás, em Mongaguá (SP), assim como outros profissionais negros na área da saúde, se aprimoraram na etnomedicina para enriquecer os conhecimentos da medicina ocidental. “O resgate do saber ancestral nos possibilita ampliar a visão sobre nossos pacientes, vendo cada um como um ser único, aprimorando a relação, criando afeto, e muitas vezes, espaço para orientação de que existem tratamentos adjuvantes fora do consultório que podem ser de grande auxílio (a ideia não é substituir o convencional, mas sim acrescentar, enriquecer e até proporcionar conforto e acolhimento emocional)”, explica.
Leia a entrevista completa abaixo:
Qual o conceito de Etnomedicina e como se aplica na prática por profissionais de saúde negros?
Etnomedicina pode ser definida como a disciplina que se dedica ao estudo das formas tradicionais de cura adotadas por determinada(s) comunidade(s) ou conjunto de conhecimentos terapêuticos e de práticas de cura tradicionais de determinada comunidade ou grupo étnico. Na prática, aqui no Brasil, profissionais de saúde negros estão, como todos os profissionais de saúde, sujeitos às regulamentações de seus respectivos conselhos (no meu caso, os conselhos regional e federal de medicina) e sendo assim, em ambiente terapêutico devemos seguir as diretrizes estabelecidas principalmente pela medicina ocidental contemporânea e os princípios da medicina baseada em evidências, que reúne fundamentação que a ciência traz para eleger para cada paciente estratégia diagnóstica e de tratamento. A questão é que o resgate do saber ancestral nos possibilita ampliar a visão sobre nossos pacientes, vendo cada um como um ser único, aprimorando a relação, criando afeto e muitas vezes espaço para orientação de que existem tratamentos adjuvantes fora do consultório que podem ser de grande auxílio (a ideia não é substituir o convencional, mas sim acrescentar, enriquecer e até proporcionar conforto e acolhimento emocional).
É possível aplicar e/ou adaptar os saberes religiosos de uma Iyaloriṣa com os pacientes do consultório?
A filosofia dos orixás apresenta valores civilizatórios, tem como pilares o respeito, a solidariedade, a paciência. Fala principalmente sobre como podemos e devemos exercer virtudes para que nossa vida seja próspera em todos os sentidos (saúde, alegria, amor, questões financeiras, etc). Através da prática desses valores e virtudes e aplicando os saberes filosóficos que adquiri dentro da tradição diariamente, acredito que o que mais levo do axé para o consultório é a capacidade de efetivamente ver, escutar, acolher e entender meus pacientes. Isso pode mudar tudo quando um paciente vai receber uma notícia ruim, como um diagnóstico de cegueira irreversível, por exemplo.
Como as experiências que você teve em países africanos lhe ajudaram a enriquecer ainda mais o seu trabalho?
Na África, eu aprendi o que é o axé, a energia vital, a força que flui em todos os planos e possibilita realizações. Aprendi o que é felicidade verdadeira, desprovida de apego a pessoas ou objetos. Aprendi que sou porque somos. Que sem benevolência, solidariedade, empatia não se pode ser feliz e viver em paz como sociedade. Eles sim são ricos, ricos de algo que a maioria aqui, infelizmente não tem. Lá eu me enriqueço como ser humano, e isso transborda por todos os lados, pois tento viver aqui desta forma em todas as minhas funções.
Há doenças oculares que são mais comuns para a população negra?
Sim, a principal é o glaucoma primário de ângulo aberto, maior causa de cegueira irreversível no Mundo. Uma doença grave e assintomática até estágios avançados. Todos devem fazer exame oftalmológico completo 1 vez ao ano, principalmente após os 40 anos.
Como é a experiência de conciliar todos os seus deveres de uma Iyaloriṣa com o atendimento aos pacientes?
É trabalhoso, pois as duas funções acarretam muita responsabilidade, tempo e dedicação, mas é muito satisfatório, nada me faz mais feliz. Quando pequena, através da iniciação em Ifá-Orunmila (a divindade que conhece o destino de todos os seres) foi dito à minha família que meu destino era cuidar das pessoas e curar as pessoas. Sendo médica e Iya eu posso fazer isso de forma completa. Sinto que estou cumprindo meu destino, fazendo o que deveria fazer nesta vida. E sou grata ao meu Ori, aos orixás, aos meus ancestrais por essa possibilidade.
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