Aos 90 anos de idade e mais de 70 de carreira, a trajetória artística de Léa Garcia inegavelmente conta com realizações que contribuíram para o reconhecimento e valorização do negro nas artes. Foi através do filme Orfeu Negro (1959), que se tornou a primeira atriz negra brasileira indicada ao prêmio de Melhor Interpretação Feminina no Festival de Cannes.
Há pouco mais de 1 ano, passei a colaborar de forma ativa na gestão de sua carreira junto ao seu filho e grande parceiro Marcelo Garcia. De imediato pensamos: os 90 anos precisam ser comemorados! Dona Léa não queria festa, mas aceitou e adorou a ideia de criamos o selo “Lea Garcia 90”, uma espécie de marca para representar as homenagens que faríamos na data comemorativa.
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Convidamos o artista sergipano Breno Loeser, que fez uma ilustração baseada em uma foto da personagem “Rosa”, icônica vilã interpretada por Dona Léa na novela Escrava Isaura (1976). Começamos a pesquisa para produção de um documentário, uma autobiografia e uma exposição com os seus trabalhos e poemas nunca publicados anteriormente.
Mesmo com toda sua história e relevância enquanto personalidade, Dona Léa Garcia nunca foi cogitada para uma campanha ou ação publicitária com nenhuma marca sequer. É de conhecimento público de que alguns artistas, em sua maioria brancos, optam por seguir apenas com o ofício da arte, sem ter suas respectivas imagens e trabalhos atrelados a grandes marcas. Já para os artistas negros, isso sequer é uma possibilidade, pois além de terem inúmeros percalços em relação as suas próprias carreiras, tampouco são cogitados para os trabalhos comerciais que se façam para além da sua arte. Em 2020, me lembro de uma notícia que me fez analisar ainda mais sobre a relação dos artistas pretos com as marcas. Era Teresa Cristina comemorando o seu primeiro patrocínio da carreira: ‘Sou invisível desde 1998’, disse a cantora.
A verdade, é que infelizmente existem diversos fatores estruturais na indústria que historicamente reforçam a ideia de que “a imagem do negro não tem potencial enquanto figura comercial”, como já ouvi por vezes. Mesmo com os avanços na luta por direitos em relação a construção imagética do negro ao redor do mundo, como o memorável “Black Is Beautiful” — movimento criado na década de 60 pelo partido dos Panteras Negras nos Estados Unidos, que tinha como objetivo exaltar a beleza negra — a estrada que vem a provocar tal reconhecimento ainda é longa.
A defesa de que essas personalidades negras influentes não comunicam com quem tem poder aquisitivo, é uma das maiores estratégias de quem “comanda o jogo”. O que não faz o menor sentido se formos analisar estatisticamente. Desde os primórdios, por uma construção de semiótica puramente eugenista, a publicidade reforça a todo instante estereótipos políticos, sociais e raciais induzindo toda uma sociedade a crença de que “preto não pode comprar”, e assim justifica a ausência de representatividade nos comerciais e campanhas publicitárias. O que automaticamente produz impactos irreversíveis na população negra, uma ferramenta quase infalível de violência psicológica, que se monta também de forma muito sutil, fator este que dificulta por vezes o debate, a conscientização e a criação de estratégias para enfrentamento.
Imagino que todo artista preto já tenha se questionado quanto a remuneração de seu trabalho. Se antes os colonizadores determinavam a escravização desses corpos promovendo o trabalho braçal de forma “gratuita”, — fundamentando o modus operandi do capitalismo — hoje esse mesmo povo, num período pós-abolição, torna-se praticamente obrigado a agradecer por oportunidades de trabalho, mesmo as infinitamente desfavoráveis se comparadas a branquitude.
Infelizmente, vivemos num país em que o racismo conseguiu evoluir bastante em relação as suas práticas, que se tornam cada vez mais desestimulantes pra quem tá no front. Há quem use como forma de justificativa o discurso de que a culpa é da “estrutura racista” em que estamos inseridos, fator esse que deveria, no meu ponto de vista, servir como base pra implementação de políticas que condenassem a mesma. Quando questionados, dizem que o mundo está mudando e o mercado ainda está se adaptando.
São mais de 500 anos de luta e parece que nada foi suficiente para que a branquitude se desprendesse do seu ódio e estranhamento contra corpos não-brancos. Ainda estão aprendendo, estão curiosamente aprendendo a deixar de animalizar corpos que não se assemelhem aos seus. É uma desculpa completamente desprezível enraizada no preconceito e na incapacidade que se tem de não só humanizar, mas também de reconhecer e naturalizar a ascensão do povo preto.
Sobre o legado Léa Garcia, sinto muito que nem mesmo a sua grandeza artística, sua autenticidade, coragem e luta incessante foram suficientes a ponto de que fosse considerada rentável por grandes marcas. Meu desejo hoje, é na verdade um pedido de atenção para que estejamos atentos e possamos refletir para que, a partir disso, possamos identificar o quanto esse sistema torna-se cada vez mais ultrapassado e disfuncional.
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