Enfrentamos, nos últimos dois anos, o silêncio do luto por causa das milhares de vidas que perdemos em consequência da proliferação de um vírus. Choramos, nos calamos. Não saímos às ruas, não abraçamos, nem nos beijamos, cuidamos dos nossos como podíamos. Sentimos saudade, algumas delas superadas com os encontros após as doses da vacina, outras ficarão nos nossos peitos para sempre, saudade de pessoas que não vamos mais ver. Espero que você, caro leitor ou leitora, não esteja como eu estou no momento: chorando. Pois este texto é sobre festa. Ou será sobre recomeço e esperança?
Por falar em (re) começo, peço licença a Exu. Aquele que abre os caminhos, e nessa avenida aberta por Exu que seis escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro voltarão para desfilar, no sábado, dia 30 de abril, o tão aguardado Desfile das Campeãs. Exu, a boca do mundo, a que tudo come, esteve na boca do povo na última semana. Já que a Grande Rio, escola de samba de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, conquistou o primeiro lugar no carnaval carioca com o enredo: Fala, Majeté! As Sete chaves de Exu! A Grande Rio apresentou e representou as multiplicidades e complexidades do guardião das encruzilhadas.
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Teve gente que reclamou. Disseram: quanta macumba no carnaval. Eu conto ou vocês contam, que carnaval e macumba não se separam? Que a avenida do desfile e todas as ruas são de domínio de Exu? Tudo sempre começa com o padê de Exu, uma comida dedicada ao orixá do movimento, feita com de farofa de dendê. Não há escola que não dê esse agrado para Exu. No carnaval dos blocos afro em Salvador não é diferente. Para que o cortejo do Afoxé Filhos de Gandhi tome as ruas da capital baiana é preciso alimentar Exu.
Festejaremos, no sábado, Exu e tantos outros temas e elementos. Com o segundo lugar, a Beijar-Flor, leva para avenida a intelectualidade negra e sua força com o enredo: Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor. Já a vermelha e branca de Niterói levará novamente para a avenida o samba: Não há tristeza que possa suportar tanta alegria, que canta o carnaval de 1919, o primeiro após a peste no Rio de Janeiro, e exalta a alegria como principal energia motora para vida. Deixando a tristeza pra lá, a Vila Isabel retoma sua homenagem à Martinho da Vila, com o enredo Canta, canta, minha gente! A Vila é de Martinho. A Portela celebra a grande árvore sagrada, o Baobá, destacando a importância da ancestralidade com o enredo: Igi Osè Baobá. O Salgueiro trás as resistências negras do passado e do presente, das lutas cotidianas para viver e existir com o enredo: Resistência.
Já que Exu é o princípio e é movimento, voltemos a Ele. O historiador Luiz Antonio Simas, em O Corpo Encantado das Ruas, fala sobre o trânsito desta divindade entre Brasil e África: “As ruas, encruzilhadas e mercados para o povo do Daomé, têm a sua divindade: Legba. E não duvidem: Legba veio morar no Brasil e por aqui ficou”.
Exu que são muitos e é um; aqui e em África; o mundo é dele, como nos apresentou a Grande Rio. Ao pensar em esperança e no recomeço, mais especificamente no primeiro dia de 2023, momento em que o novo presidente tomará posse, após o escolhermos juntos enquanto nação, em outubro, lembro-me de Legba. Mais especificamente, de uma das muitas definições dessa entidade apresentada por Simas no livro já citado, que diz assim: “Legba é a potência da transformação encarnada na ação das mulheres e dos homens. Ele é um estado de disponibilidade para transformar o mundo que vive em cada um. Nós somos, em estado de Legba, os que podemos nos conduzir, contra o horror, até os terreiros mais amplos da alegria”.
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