Por Rodrigo França

Mesmo no Dia dos Namorados, esta escrita não é — ou não é apenas — sobre o amor romântico. Porque antes de amar o outro, é preciso aprender a se amar. E para nós, pessoas negras, esse amor-próprio é também um gesto político, um ato de cura, uma reaproximação daquilo que tentaram arrancar: nossa dignidade, nossa beleza, nossa inteireza.

Todo mundo deveria ter o direito de amar, de escolher com quem deseja construir afeto. Mas é preciso lembrar que toda escolha carrega um contexto. E que, em um país atravessado por tantas camadas de violência, nenhuma decisão é neutra. Amar, também, é político. Especialmente quando se trata de nós, que por tanto tempo fomos ensinados a não nos amar — nem a nós mesmos, nem entre nós.

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Este texto não é um julgamento. É um convite. Um chamado à consciência, não ao constrangimento. Porque aquilo que a gente vive no íntimo também é atravessado por séculos de imposições. A nossa autoestima foi alvo. O nosso desejo foi moldado. A nossa humanidade, tantas vezes, negada. E isso tudo não desaparece num gesto de carinho, por mais sincero que ele seja. Está nas entrelinhas. Nos silêncios. Na forma como, até hoje, se representa — ou se apaga — o amor preto.

Falar de amor preto não é levantar um muro. É abrir um espaço. É lembrar que fomos afastados da possibilidade de amar com liberdade, com ternura, com profundidade. Que nos fizeram acreditar que só seríamos amáveis se nos aproximássemos daquilo que o sistema valoriza: a branquitude, o corpo moldado, o cabelo liso, a alva. Isso não foi natural. Foi aprendido. E o que é aprendido pode — e deve — ser questionado.

O que propomos é um outro horizonte. Um amor que não repita o que tantas vezes já falhou. Um amor que não reproduza os afetos hierárquicos, baseados na posse, na desconfiança, na comparação constante. Um amor que seja nosso. Que converse com a nossa história, com os nossos saberes, com o tempo que pulsa no nosso corpo. Que seja decolonial. Que recuse os moldes prontos do Ocidente, que nos prometem plenitude e nos entregam solidão.

Porque a solidão da mulher negra, por exemplo, não é resultado de uma suposta inadequação. É reflexo de um sistema que a vê como forte demais para ser cuidada, como “exótica” demais para ser escolhida. E o homem negro, por sua vez, carrega o peso de uma virilidade imposta, da desconfiança constante, da dificuldade de ser vulnerável. Não somos culpados por isso. Mas somos responsáveis por não perpetuar essas dores.

Amar preto é reeducar o olhar. É perceber beleza naquilo que nos ensinaram a rejeitar. É reconstruir a confiança, a parceria, o encantamento. É romper com o modelo do negro único — aquele que “deu certo” e, por isso, se distancia dos seus. É entender que o amor que desejamos e merecemos se constrói a partir da comunidade, do cuidado mútuo, da escuta generosa. É se permitir ser visto e ver o outro por inteiro, sem filtros coloniais.

O amor preto não é exceção. Não é compensação. Não é resistência solitária. Ele é revolução quando se propõe a curar, a reinventar, a oferecer aquilo que o sistema sempre nos negou: leveza. E é justamente essa leveza — construída com dignidade, consciência e afeto — que nos aponta um novo caminho. Amar preto é quebrar o ciclo da negação. É afirmar que somos possíveis. Que somos desejáveis. Que somos completos.

Neste Dia dos Namorados, celebre se quiser — mas, sobretudo, reflita. Que tipo de amor estamos construindo? Que valores estamos repetindo? E o que podemos criar de novo a partir da nossa ancestralidade?

Porque se o projeto foi nos desumanizar, que o amor seja o caminho para nos reumanizar. E que ele seja inteiro, nosso, com a nossa cara, o nosso ritmo, a nossa memória.

Ame-se, primeiro. Como nossos mais velhos sempre sinalizaram: se a sua escolha for um relacionamento monorracial, beije sua preta ou seu preto em praça pública. Sem vergonha, sem medo, sem disfarce. Seu — não no sentido de posse, mas de espelho. De quem caminha ao lado, refletindo sua história, sua luta, sua beleza.

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