Com a pandemia do Coronavírus, ficou ainda mais evidente para o mundo que existe uma grande quantidade de pessoas que não confiam na vacinação. Conhecidos como “antivacina” ou “anti-vax”, esse movimento, porém, não é recente. A hesitação e relutância para vacinação teve início no século XVIII, quando foi desenvolvida a primeira vacina. Essa desconfiança se intensificou nos últimos anos em decorrência das fake News cada vez mais recorrentes, o que levou a Organização Mundial da Saúde a declarar o movimento antivacina como um dos 10 maiores riscos para a saúde mundial, em 2019.
Especialmente nos Estados Unidos, onde a vacinação normalmente não é gratuita, a população desconfia da vacina conta a COVID-19 por diversos motivos, principalmente devido a rapidez em que foi desenvolvida e em decorrência de teorias da conspiração sobre efeitos colaterais e efetividade das vacinas. Todavia, quando falamos da população negra, a desconfiança na vacinação tem uma origem um pouco diferente.
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Não é surpresa para ninguém que um dos grandes pilares da escravidão era o uso de pessoas negras como cobaias para experimentos científicos. Homens e mulheres negros eram constantemente submetidos a procedimentos perigosos, muitos destes que vieram a se tornar alguns exames que fazemos hoje, como é o exemplo do instrumento espéculo, utilizando em exames ginecológicos. O espéculo foi inventado em meados de 1845 pelo cirurgião James Marion Sims para fazer cirurgias sem anestesia em suas escravas, como forma de estudo da anatomia feminina. Não surpreendentemente, esses experimentos macabros são conhecidos como a base da ginecologia moderna. Mas, afinal, o que isso tem a ver com as vacinas?
Esses experimentos feitos na época da escravidão normalizaram uma visão de que pessoas negras são mais “fortes” quando, na verdade, só sofremos mais abuso durante a história. Isso acarretou em uma série de eventos, pós-abolição da escravidão, onde negros ainda eram usados como cobaias, mas de forma mais velada. E é aí que chegamos no ponto da vacina, e no experimento de Tuskegee.
O “Estudo” de Tuskegee foi um experimento promovido pelo próprio serviço de saúde dos Estados Unidos, entre 1932 e 1979, para testar o desenvolvimento da sífilis em homens negros em Tuskegee, no Alabama. O experimento envolveu 600 homens negros, inicialmente: 399 desses homens tinham sífilis, 201 não tinham. Os participantes da pesquisa foram informados que estavam sendo tratados para bad blood (sangue ruim), expressão da época que se referia à sífilis, anemia, mal estar e etc. Porém, o que eles não sabiam é que, na verdade, não estavam recebendo tratamento algum, e sim fazendo parte dessa pesquisa. Os “pesquisadores” visitavam as cobaias constantemente para verificar o andamento da doença e, em cada visita, ofereciam a eles refeições, exames grátis e um tipo de plano funerário. Na época, com a pouca informação sobre a doença, os pacientes não percebiam que não estavam sendo tratados e sim utilizados como cobaias.
Ou seja, o experimento consistiu em permitir que centenas de homens negros morressem de sífilis apenas para serem observados por “pesquisadores” enquanto morriam da doença. Para piorar, em 1943 foi descoberto que a penicilina era efetiva para tratar a sífilis. Intencionalmente, nenhum desses homens recebeu tratamento, foi permitido que eles morressem para que fosse observada a forma como a sífilis consumia um indivíduo negro. E, ainda, nenhum desses homens sabia que estavam, na verdade, participando da pesquisa, intitulada: “Tuskegee Study of Untreated Syphilis in the Negro Male” (O estudo da sífilis não tratada no homem negro em Tuskegee). Mais de 100 pessoas morreram em decorrência desse “estudo”, além de centenas de homens, mulheres e crianças negras que contraíram a doença uns dos outros e sofreram os efeitos físicos e mentais.
Aí, você se pergunta: “Mas por que esse experimento foi feito apenas em pessoas negras?”. Bom, acho que já sabemos a resposta.
Eventualmente, em 1970, a verdadeira história dessa pesquisa absurda saiu na mídia americana. Após a descoberta, as vítimas que sobreviveram e suas famílias entraram com um processo, que culminou no governo americano pagando mais de 10 milhões de dólares às famílias, além de tratamento médico vitalício e auxílio funerário e um pedido de desculpas do presidente Bill Clinton em 1997.
Porém, como voltar a confiar em um sistema de saúde que deliberadamente causou a morte e sofrimento de centenas de pessoas negras, sem que elas soubessem? É por isso que boa parte da população negra estadunidense não está se vacinando conta a COVID-19, especialmente os mais velhos. Falta confiança, e, infelizmente, essa desconfiança está baseada na história. Partindo desse ponto de vista, a hesitação em alguns afro-americanos em tomar a vacina não se torna justificável, mas é possível compreender esse medo. Eles acreditam no vírus, mas como confiar em uma vacina gratuita oferecida pelo governo depois de um acontecimento como esse na história?
Por isso, muitos negros tem optado por fazer extensivas pesquisas sobre a vacina antes de tomar. É o caso da Nicki Minaj, da SZA e da atriz Letitia Wright, que compartilharam suas desconfianças nas redes sociais. Obviamente, isso não justifica. Especialmente por elas serem pessoas famosas e da mídia, é de uma grande irresponsabilidade que elas reforcem esse tipo de pensamento, já que possuem grandes audiências, formadas por pessoas negras, inclusive, o que pode reforçar o receio de se vacinar. Além de ser fácil ver que as declarações das três vem acompanhada de algum tipo de fake news também, como é o caso do exemplo dado por Nicki Minaj, do amigo de seu primo ter ficado impotente depois de tomar a vacina, e no caso de SZA, de seu amigo ter ficado cego e paraplégico por causa da vacina da gripe suína. Bem parecido com as fake news de WhatsApp que recebemos por aqui.
O ponto é: é parte da responsabilidade do governo americano entender que essa hesitação não entra em toda a bagunça das fake news que o restante dos estadunidenses, majoritariamente brancos, acreditam. É responsabilidade do governo, também, entender e conversar com esses cidadãos para que eles se sintam seguros em se vacinar. Afinal, não é culpa deles que experimentos racistas e antiéticos, para dizer o mínimo, eram realizados por órgãos oficiais do governo. A única forma de reinstaurar a confiança dos afro-americanos na vacina, é fazendo-os entender que os tempos mudaram e, agora, existe segurança para que negros sejam vacinados e tratados contra doenças, e não expostos à elas propositalmente. O foco precisa ser sempre este: as vacinas são seguras, e precisamos delas. Não só a da COVID-19, como todas as outras. A esperança é de que todos compreendam isso o mais breve possível.
Escrito por: Thais Moreira
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