Em uma palestra realizada para pais que pleiteiam a adoção, Paulo Sergio P. dos Santos, filho adotivo e pai adotivo, falou sobre a importância de pais de adoção compreenderem que crianças adotadas têm uma identidade, uma origem, um passado. Ou seja, em uma adoção inter-racial, tentar apagar ou fingir não existir a identidade negra dessa criança apaga parte de quem ela é.
Dia 25 de maio é o Dia da Adoção, e quando falamos em adoção estamos falando de famílias negras e crianças negras, principalmente. As condições do negro pós-escravidão geraram efeitos desastrosos na família negra, empurrando milhares de crianças para a fila da adoção em busca de um lar. No Cadastro Nacional de Adoção do Conselho Nacional de Justiça, das 8.476 crianças cadastradas para adoção, 65,93% são negras e pardas, um total de 5.588 crianças no Brasil.
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Cada vez mais aumenta o número de pretendentes que não têm preferência pela cor das crianças, em 2015 eram 15.594 e hoje, a CNJ contabiliza que dos 46.390 cadastrados, 24.047 aceitam crianças de todas as raças. Apesar de parecer que há um excedente de famílias que aceitariam crianças negras e pardas, há outros impeditivos que dificultam essa adoção como idade, doenças e gênero dessas crianças, itens de critério que constam na ficha cadastral dos adotantes.
Estar na fila de adoção, para muitas famílias, tem como foco encontrar crianças que se adaptem ao “perfil do filho imaginado”. Com essa mentalidade, optam por crianças que se pareçam com elas, principalmente na estética, para assim, essa criança, completar a família. A regra é: quanto mais nova melhor e quanto mais parecida com a gente melhor. Essa cultura da adoção no Brasil, enxerga a criança como mercadoria – um objeto a ser desejado – e ignora, muitas vezes, a necessidade que essas crianças têm de um lar, independentemente de sua idade, gênero, doença ou raça. Somado a isso o racismo que cria uma hierarquia racial entre as crianças, onde as negras são descartas, tudo acaba por empurrar as crianças negras para o final da fila, tirando a possibilidade de terem um lar.
Quando a adoção inter-racial acontece
O ideal seria que todas as famílias em processo de adoção, não fizessem distinção de raça, assumindo uma mentalidade antirracista de compreender que a cor da criança não vai interferir em quem ela, humanizando assim esse processo e compreendendo que ali há apenas uma criança.
Quando pais na fila de adoção optam por adotar, independentemente da raça, há uma chance maior dessa criança ser negra, haja visto que são maioria na fila da adoção. Nesses casos, quando a família é branca e adota uma criança negra ou vice-versa, como fica a questão do pertencimento racial e do racismo para essas pessoas? Perguntamos para três pessoas que vivem essa realidade e elas deram seus depoimentos, veja a seguir:
Carolina de Biagi Pereira, 38 anos, negra adotada por uma família branca. “Acho que as questões de racismo levaram mais tempo pra serem entendidas, eu sofri muito bullying e por muitos anos levei como um ataque pessoal e não como algo estrutural. Minha mãe é cabeleireira e sempre se esforçou pra que eu amasse meu cabelo natural, o mais difícil era a falta de referências (mesmo as mulheres negras que eu conhecia alisavam o cabelo). A melhor parte é que meus pais sempre me incentivaram a ir atrás do que me interessasse culturalmente. Acho que a dificuldade era uma coisa da época, de falta de acesso mesmo. Hoje eles entendem melhor questões raciais e eu também, acho que fomos aprendendo juntos.”
Luana Paulino Mariano, 30 anos, branca adotada por uma família negra. “Pra mim, nunca houve diferença alguma em fazer parte de uma família com pessoas negras. Sempre houveram questionamentos das pessoas comigo, de o por que eu era branca e minha mãe negra? Minha resposta sempre foi, porque vivemos no Brasil, onde existem diversas misturas de cores de pele. Confesso que sou apaixonada pela cultura negra. Amo um bom samba, samba-rock, black. Tranças, cabelos cacheados, blacks power. Minhas referências sempre foram voltadas para a cultura negra. Minha melhor amiga é negra. Confesso que nunca me atentei ao preconceito, acredito, por estar muito inserida, não tenha percebido algo explicito para com a minha mãe ou família. Mas me lembro da minha mãe indo para cabeleireiros, passando, as vezes, o dia todo para alisar seus cabelos e me dizendo sempre que se ela tivesse os cabelos iguais aos meus estaria no céu! E agora, depois de praticamente 28 anos, ela conseguiu finalmente aceitar os cabelos da forma que são. A luta é grande! Contudo, tenho fé que pelo menos na geração dos meus filhos que são negros, fruto de um casamento inter-racial, eles possam ter a liberdade de serem como são e acima de tudo respeitados, não pela cor da pele e sim como seres humanos.”
Paulo Sergio P. dos Santos, negro adotado por uma família branca. “Minha experiência de adoção, traz um traço particular de ter sido feita no início dos anos 60 e na condição inter-racial com a família adotante, o que era raríssimo. A origem da situação não foi muito diferente do cenário atual, uma família negra de recursos limitados e, em situação de dificuldades de sustento dos filhos, a genitora surpreendida pela condição de viuvez fez a entrega dos filhos ao Estado na esperança que teriam melhores cuidados. Numa época em que não havia sequer base de sustentação jurídica para garantia dos direitos aos adotados e regido pelo antigo Código de Menores, o processo foi longo e somente aos dez anos de idade foi concluído com a certidão definitiva e sobrenome da família adotiva. Apesar de ter recebido total suporte afetivo, fundamental na construção dos vínculos e estabilidade emocional nas relações familiares e sociais, houve a ausência do elemento étnico de origem como base de sustentação do ser humano. Em momento algum, isto foi motivo de condenação aos meus pais, visto que eles não possuíam elementos e nem recursos culturais de entendimento desta necessidade. No entanto, o suprimento afetivo familiar foi suficiente para o desenvolvimento do meu projeto de vida e o reencontro com a realidade da identidade negra, veio a partir da universidade, na formação da minha família e na militância junto aos grupos de apoio à adoção. A temática da adoção inter-racial, tem sido muito frequente nos fóruns de discussão da Adoção e, por parte dos interlocutores, quase sempre abordada considerando a importância de as famílias estarem atentas com o valor étnico de origem dos seus filhos, na implementação de uma cultura antirracista e o empoderamento dos filhos aos enfrentamentos que surgirão.” Paulo também é pai adotivo, ex-presidente da ANGAAD-Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção, atual diretor financeiro e conselheiro. Palestrante e incentivador de diversos grupos de apoio à adoção no Brasil, nos últimos 30 anos).
Antirracismo na adoção
No que podemos observar no relato desses hoje adultos adotados, enquanto que para a Luana, branca, adotada por negros, a cultura negra tem forte influência em seu gosto, para os negros adotados por famílias brancas, Carolina e Paulo, a compreensão da negritude não foi algo dado pela família, mas sim uma construção ao longo da vida, assim com diz Neusa Santos Souza em seu livro Tornar-se negro “Ser negro não é uma condição dada a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro.
É unânime que todos eles são imensamente gratos pela família que os acolheram e os ajudaram em seu desenvolvimento humano, econômico e social e no seu pertencimento enquanto seres humanos, crianças que eram. Nesse dia adoção o desejo é que mais crianças possam encontrar um lar. Para as famílias que adotam crianças negras é essencial iniciar, para ontem, uma luta antirracista conscientizando familiares e amigos para que essas crianças não sofram violências racistas no núcleo familiar e sejam ensinadas sobre a beleza e a potência de sua origem negra.
Fonte dos dados: https://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf
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