Novelas de época, como Deus Salve o Rei, trama das 19h da Globo carecem de atores negros. A justificativa é que por ser uma novela Medieval, antes do período da escravidão, não haveria motivos para a presença de pessoas negras circulando nos vilarejos, mesmo sendo uma cidade fictícia.
Em Londres, o Achilles de Troia, do seriado da Netflix é negro. Gerou críticas do público? Claro que sim, mas os roteiristas bancaram o personagem e a escalação não esperada porque quando falamos de ficção, tudo é possível.
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No Brasil, a próxima novela das 21 h, Segundo Sol, já vem gerando discussão sobre questões raciais antes mesmo do seu lançamento. Motivo: um elenco com protagonistas que não representam o fenótipo de 80% da população local e é claro, a Globo tem uma resposta para justificar o injustificável.
“Os critérios de escalação de uma novela são técnicos e artísticos. A Globo não pauta as escalações de suas obras por cor de pele, mas pela adequação ao perfil do personagem, talento e disponibilidade do elenco. E acredita que esta é a forma mais correta de fazer isso. Uma história como a de Segundo Sol, também pelo fato de se passar na Bahia, nos traz muitas oportunidades e, sem dúvida, reflexões sobre diversidade na sociedade, que serão abordadas ao longo da novela, que está estruturada em duas fases. As manifestações críticas que vimos até agora estão baseadas sobretudo na divulgação da primeira fase da novela, que se concentra na trama que vai desencadear as demais. Estamos atentos, ouvindo e acompanhando esses comentários, seguros de que ainda temos muita história pela frente!”.
Se os critérios passam por questões como talentos dos atores e não há negros protagonistas, na primeira fase, que é a mais importante para cativar a audiência e apresentar a história, a impressão que fica é que só brancos tem competência para papel de destaque. Dizer que as manifestações trazem reflexões sobre a diversidade, é admitir a limitação intelectual dos roteiristas que precisam de críticas para perceber que a trama não é fidedigna em termos de representação étnica e ainda nos pedem paciência para esperar até a segunda fase do folhetim.
Para Diretor negro, roteiristas são o problema
“Eles colocaram que se trata de perfil. Eu pergunto quem faz o perfil? Quem faz isso é quem escreve o roteiro, quem coloca as características dos personagens. Então eu acho que o problema principal está aí”, argumenta Anderson Jesus, ator, diretor e roteirista, dono da produtora Iracema Rosa Filmes que é parceira do canal da TV a cabo A &E. “Nós negros não estamos em primeiro plano na cabeça de quem escreve as personagens. Outro problema é essa questão de perfil, que geralmente está relacionado com o visual. Por exemplo, se estamos falando em um médico dono de uma clínica, o ator negro não é considerado”. Para Anderson, o autor é o problema, e os negros ficam sempre destinados a papéis estereotipados. “Se é um médico negro, tem que ter algo por trás, como uma deficiência ou abuso na infância ou foi resgatado por uma família branca. Sempre tem algum trauma”, detalha o diretor. De acordo com ele, o papel de negros é o convencional personagem ligado à criminalidade
Para ele, o cenário só muda com atores e diretores negros. “Eu acho que o problema não está na cúpula da Globo, está mais abaixo, na mão de pessoas que tomam decisões, e não temos negros lá, ou qualquer pessoa realmente preocupada com a inclusão. E eu acho que a televisão, o áudio visual é um dos principais causadores do racismo no Brasil, por que ela é ainda uma forte formadora de opinião e movimenta as massas que estranham a presença de negros em aeroportos e lugares elitizados, justamente por que isso não aparece na mídia”.
Ator baiano acha que novela desrespeita a história da Bahia
“Eu acho essa novela um disparate, um desrespeito com a nossa história ancestral. A Rede Globo é uma concessão pública, nós pagamos para que ela exista”, explica o ator baiano do Bando de Teatro Olodum, Sergio Laurentino. Para ele a dramaturgia brasileira é “embranquecida graças ao seu Jorge Amado e outros”.
“Eu estou numa cidade chamada Salvador que tem 89% de negros e é impossível que no século 21 a gente tenha qualquer tipo de história que essa ancestralidade, a minha pele, a minha cor, o que eu sou, não seja contado nessa novela. É preciso fazer histórias que contem a nossa história”, argumenta o ator, que também estuda Jornalismo. “É impossível contar a história dessa cidade, sem negros, só do ponto de vista dos brancos. Eu vou fazer de tudo para boicotar essa novela, juntamente com a Nova Frente Negra Brasileira, juntamente com a Freta Favela, nós vamos fazer de tudo para boicotar essa novela. Chega dessa parcimônia”, protesta Laurentino.
Fiz duas faculdades, falo 4 línguas e não consigo trabalho aqui no Brasil
Taiguara é um dos rostos negros mais conhecidos no mundo artístico e da moda. Mesmo com uma vasta experiencia internacional, duas faculdades, fluência em quatro idiomas, aperfeiçoamento de suas técnicas artísticas em canto e dança, ele se frustra ao falar como a beleza limitou suas opções de trabalho, tendo em vista que corpos negros não servem pra interpretar personagens dentro do padrão de cidadão comum.
“Quando voltei para o Brasil, achei que fosse fazer sucesso no meu país. Fiz Presença de Anita e foi um grande papel que qualquer branco que tivesse feito o personagem do jeito que eu fiz, estaria contratado até hoje. Acontece que virei símbolo sexual, só consegui personagens que tem a ver com corpo ou beleza. Eu sofro um preconceito às avessas por ser um negro bonito. Se eu fosse um negro com um aspecto ´mais ordinário’ conseguiria mais trabalho. Eu era muito bonito para ser escravo ou bandido”, relata o ator paulistano.
Taiguara fez um temporada recente na Irlanda e Inglaterra com a peça As Duas Mortes de Roger Casement, onde ele fez uma coisa rara, que foi interpretar um personagem sem nenhum apelo físico, ele foi contratado pela sua competência em atuar. “Fiz essa temporada lá fora e sempre trabalhei mais por lá, não tinha essa coisa de corpo. Nessa peça eu até cantava. Hoje estou desempregado, mas sempre mais sempre preparado para uma oportunidade”, finaliza.
“Tu é preta, pobre você acha mesmo que eles vão te dar uma oportunidade que não seja de escrava e empregada?”
“ Eu sempre soube que não seria fácil ser protagonista um dia. Me lembro como se fosse hoje, depois de três anos de escola de teatro. Formada, liguei pros meus pais toda feliz e disse que agora eu era atriz. Mainha disse `parabéns minha filha você merece e que seus caminhos se abram pra sua felicidade e realização´. Na vez de painho, ele disse as palavras mais duras que já ouvi na vida `minha filha, deixe dessa história. Volte pra cá, esse negócio de artista, artista! Tu é preta, pobre você acha mesmo que eles vão te dar uma oportunidade que não seja de escrava e empregada?’”. Esse é relato da atriz Érica Ribeiro, muita conhecida pela garotada por sua atuação programa Zoo da Zu, do canal Discovery Kids, além de atuar em peças e ainda comandar o canal Vai Trazendo, seu canal no Youtube.
“Eu chorei muito, mas no fundo eu sabia que Painho não desacreditava de mim, mas sim de quem escreve as nossas histórias. As nossas histórias que por vezes nos são negado o protagonismo. Quer dizer que Giovana Antonelli pode ser Angelicat, fazer a Capitu(Garota de Programa Ficha Rosa) Jade(muçulmana mesmo sabendo a grande concentração de muçulmanos de pele escura) Anita Garibaldi( Heroína popular) Alice( protagonista em uma novela com plano de fundo a cultura oriental) e Luzia em Sol Nascente como a cara do Brasil. Só falta ela fazer a Daniela e sair cantando “A cor dessa cidade sou eu”, provoca Érica.
“Chega do título de preto único, chega de sermos cotas nas produções. Lázaro e Tais são incríveis e estão fazendo um vendaval nos últimos tempos em questão de representatividade. Mas, ainda é pouco, bem pouco perto dos talentos desconhecidos espalhados pelos quatro cantos do país. A Bahia carrega um histórico de brilhantismo artístico imensurável. Seja através da música, dança, escrita e atuações. O carioca pode chiar em novela com enredo paulistano. Vai o baiano cantar pra ver o que acontece. Esses privilégios precisam ser revistos”, encerra a Youtuber.
Boicotar ou não?
As redes sociais geraram muitas manifestações contra a escalação de atores da novela Segundo Sol, não só dos artistas, mas também do público. Se para falarmos das nossas mazelas no programa de Fátima eles nos encontraram, porque para contar nossas histórias como protagonistas não somos convidados?
Enquanto não doer na audiência, a Globo continuará achando que está acertando.
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