Al Hajj Malik Al-Shabazz, popularmente conhecido como Malcolm X, não foi apenas uma figura controversa, como alguns ainda insistem em encaixotar o ativista pelos direitos dos negros. Malcolm é um dos grandes pensadores sobre os direitos humanos surgidos no século passado. Seu pai foi assassinado por membros da Klu Klux Klan (KKK) quando ele ainda era uma criança, e sua família desmembrada. A mãe foi parar num asilo psiquiátrico e depois, como muitos jovens negros da época, aprendeu a ganhar a vida nas ruas aplicando golpes. Essa sequência de acontecimentos levou Malcolm Little (como era chamado antes da conversão ao Islamismo) à prisão e, por consequência, a ter contato com os ensinamentos do islamismo, o que mudaria a sua vida e os caminhos de luta de muitos negros nos Estados Unidos.
São essas passagens e outras posteriores, baseadas na autobiografia do ativista, que são retratadas em “Malcolm X”, filme de 1992, dirigido por Spike Lee.
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O longa traz Denzel Washington no papel de Malcolm, na que é uma das performances mais imersivas de um ator em um personagem, mas isso falamos mais para frente. O filme tem uma reconstituição de época competente, retratando bem o Harlem (bairro negro de Nova York) dos anos 30, com seus clubes de jazz fervilhantes, que, se não fossem as cores, evocariam um aspecto noir. Depois, temos os anos 50 e 60 emulados igualmente de forma competente. Entre as interações de Malcolm com os moradores do bairro, temos flashbacks mostrando os primeiros enfrentamentos racistas na vida de Malcolm, como os ataques à sua casa por membros da KKK ou quando um professor diz a ele que mesmo com boas notas ele não poderia ser advogado pois as mãos de um negro são feitas para trabalhos manuais.
É importante notar que Spike Lee não fez do filme uma ode ao seu retratado, mas tentou reproduzir com fidelidade tudo que havia sido registrado no livro em que se inspira, assim como nos discursos e entrevistas gravadas. Não há uma santificação ou tentativa de “limpar a barra”, mas a construção cuidadosa, minuto por minuto, de seu protagonista, sem tentativas artificiais de limpar a barra. O primeiro ato não se apressa em parecer grandioso, mas pincela sem correria a construção da personalidade de um homem preto que ainda enxerga a mulher branca como maior bem a ser conquistado do homem branco, assim como alisar o cabelo como forma de parecer “mais bonito”.
A estadia no presídio, conversão ao Islamismo e aproximação da figura do líder Elijah Muhammad (Al Freeman Jr.), fundador da Nação do Islã, e a libertação de Malcolm aceleram o ritmo do filme, que tem sua primeira hora mais arrastada, mas essa construção cuidadosa é necessária para vermos Denzel Washington encarnar não só as características físicas como os maneirismos, a assertividade e a personalidade magnéticas tão conhecidas de Malcolm X. Ainda que Spike Lee acerte na ambientação, nos detalhes da narrativa, o que faz com que as três horas de filme não pesem é a interpretação magnífica de Washington. Da figura reticente em deixar os ensinamentos da rua em troca de novas orientações e conduta, até a imagem do líder e orador nato que conhecemos. É assustador como personagem e ator parecem se fundir em um daqueles raros casos em que é possível vermos desaparecer o intérprete em tela e enxergarmos somente o personagem.
Em seus olhos, vemos a busca pela identidade que se perdeu. No mergulho dos ensinamentos do islamismo, Denzel traduz o olhar com que Malcolm X enxergou a situação degradante dos pretos nos Estados Unidos e entendeu os indivíduos brancos como inimigos que devem ser combatidos e expostos, “por qualquer meio necessário”. Seus discursos mais famosos estão lá, incendiários, convincentes, de forma que é como ver o próprio autor em oratória. Ao contrário de cinebiografias recentes em que a interpretação oscila entre a imitação e a caricatura, Denzel apresenta o estudo de um personagem, nunca o desrespeitando com exageros desnecessários tantas vezes premiados pela Academia.
Nenhum coadjuvante compromete, com destaque para o próprio Spike Lee (participando como o malandro Shorty), até a indefectível Angela Bassett, interpretando Betty Shabazz, companheira do ativista. Mas ainda que as interações sejam determinantes para as reflexões do personagem retratado, um ator menos talentoso não seguraria a complexidade enérgica dos discursos de Malcolm X, como fez Denzel nesse filme.
“Malcolm X” é um filme poderoso sobre uma das figuras mais fascinantes, belas e trágicas do século 20. Uma obra-prima que cresceu com o tempo, ainda que as três horas possam pesar para uma parcela do público, as gorduras são compensadas por uma atuação magistral de seu protagonista e pela figura cativante retratada.
O filme está disponível na Amazon Video.
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