A entrada da artista Linn da Quebrada no Big Brother Brasil foi triunfal. Ela desfilou com seu corpo negro de travesti (identidade que a mesma utiliza), o que por si só já um ato político importante. Mas ela não parou por aí. Ela estava vestida com uma blusa com a imagem de Anastácia. Sob os olhares de milhões de espectadores, do Brasil e do mundo, Linn comunicou a liberdade.
A roupa escolhida por Linn para ser usada na sua estreia no reality show, que ocorreu na última quinta-feira, dia 20 de janeiro, já estava separada há tempos. A camisa faz parte do projeto Monumento à Voz de Anastácia do artista visual Yhuri Cruz. Os dois já estavam construindo a ideia da roupa exclusiva desde dezembro, conforme relatou Yhuri (que também é escritor e dramaturgo) em suas redes sociais. O projeto, na sua pluralidade, desenvolveu-se em 2019, para “monumentalizar a boca insubmissa vedada pela história”, conforme apresentou seu idealizador. Ainda de acordo com Yhuri Cruz, o trabalho pode ser encontrado no Instituto Moreira Salles de São Paulo na exposição “Carolina Maria de Jesus – Um Brasil para os Brasileiros” e na “Protagonismo”, no Museu da História e Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB) no Rio de Janeiro. Também podemos encontrá-lo em livros didáticos, e ele continua sendo distribuído gratuitamente como santinho e comercializado na versão de colecionador.
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Você poderá olhar para a camisa e pensar que já viu essa imagem em algum lugar. No esforço de se lembrar (talvez bem-sucedido), você notará que há algo diferente na obra de Yhuri em que ele representa Anastácia, como ficou conhecida a negra escravizada de olhos azuis com uma máscara de tortura sobre a boca. De maneira brilhante, o artista apresenta a negra sem o instrumento de tortura e com um lindo sorriso.
O retrato de Anastácia original é uma imagem penetrante, densa, e ecoa as violências e violações do sistema escravista a que gerações de africanos foram submetidos. São muitos os mistérios que cercam a história dessa mulher com olhos marcantes. A escritora e artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba, no livro Memórias da Plantação, mostra algumas versões do passado de Anastácia. Alguns dizem que ela pertencia à realeza Kimbundo, nascida em Angola, captura e levada por uma família portuguesa para a Bahia na condição de escravizada. Anos depois a família portuguesa retornou para o país de origem, e na ocasião ela teria sido vendida e foi trabalhar na produção açucareira. Outros afirmam que ela foi uma princesa iorubá e que foi sequestrada por traficantes de escravos europeus e enviada para o Brasil na condição de cativa. Outros ainda alegam que ela nasceu na Bahia mesmo. Não sabemos seu nome africano. Pois Anastácia recebeu esse nome ao entrar no sistema escravista.
O motivo que a levou a carregar a máscara também é um mistério, restam apenas hipóteses. Dizem que ela teria recebido a máscara como castigo após ter arquitetado a fuga de outros escravizados, há relatos de que sua sinhá, por ciúme dela com o senhor e por conta da beleza de Anastácia, teria colocado o instrumento de tortura. Há descrições de que ela haveria resistido à violência sexual do senhor e, irado, ele teria feito ela submeter-se a esse castigo. São muitas as narrativas das supostas razões. Por trás desse passado incerto há alguns fatos. Anastácia era considerada santa pelos demais escravizados. O retrato foi feito no início do século XIX por um francês. Foi no século XX que ela se tornou símbolo da luta contra a opressão colonial e da luta antirracista. Anastácia é uma personagem política e religiosa. Hoje está em terreiros (de candomblé e umbanda) e igrejas católicas, ou seja, no centro de devoções negras. Muitas vezes recebe homenagens junto com os Pretos Velhos, nas festas de maio, mês da abolição da escravização no Brasil. De escravizada a santa, Anastácia ganhou este título dos devotos. A vontade e a voz do povo sacralizaram uma mulher marginalizada pelo colonialismo.
A máscara que cobre a boca do sujeito negro escravizado pode ser entendida como a materialização do silenciamento. Uma peça que expressa o projeto colonial europeu que vigorou no Brasil por mais de trezentos anos. A máscara que a impede de comer e falar sinaliza o poder colonial de dominação e tortura. Contra esse regime brutal de silenciamento e apagamento sistemáticos, santas emergem. Os brancos só tentaram calar Anastácia e tantas outras Anastácias porque sua voz, seu rosto e seu corpo eram e são potentes, são instrumentos poderosos de transformação social.
O nosso silêncio, eles não dominam. Eles têm medo do que podemos fazer quando falamos/cantamos. Eles já não podem nos proibir de ser, de existir. Quando o corpo negro travesti aparece num meio de comunicação de massa desfilando, por si só e por tudo que esse corpo representa ele já fala, já grita, e a mensagem é: liberdade.
texto por: Débora Simões, professora, historiadora e doutora em antropologia social
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