Por Prof. Dr. Ivair Augusto Alves dos Santos
A sociedade brasileira é estruturalmente racista, hierarquizada e violenta em diferentes dimensões. O racismo é exercido sem a necessidade de expor a raça e de afirmar a superioridade já posta do branco, pois ele é dinâmico, se renova e atualiza com muita rapidez.
Notícias Relacionadas
Pele negra utilizada como prova para condenação criminal. E a assustadora explicação do Judiciário (Parte I)
FOTO 3X4: Rudson Martins – Produtor de Elenco
A educação reproduz esse racismo de muitas formas. Em sala de aula, na relação aluno e professor. No currículo, nos materiais didáticos e paradidáticos. Na hierarquia da escola. Os intelectuais negros e as lideranças do movimento negro denunciaram essa violência ao longo dos séculos XIX e XX, e só no XXI conseguiram aprovar uma legislação educacional que colocava o tema do racismo. A partir de 2003, em razão da obrigatoriedade da Lei 10.639, os representantes do Estado brasileiro foram instados a iniciar um processo de reparação histórica. A assumir a responsabilidade de eliminar a invisibilidade do negro, de fazer a crítica aos estereótipos associados a ele e de resgatar a sua história no Brasil.
O combate à discriminação racial e ao racismo nas instituições educacionais públicas e privadas foi incumbido, de forma compartilhada, aos gestores, diretores de escola, coordenadores pedagógicos, professores, pesquisadores, e também às merendeiras, aos vigias e demais funcionários, incluindo ainda no esforço as famílias dos estudantes e o entorno da comunidade escolar. Todos foram convocados ao esforço de combater o racismo estrutural ali onde se ensina como funciona o mundo, e onde se aprende que é possível mudá-lo para funcionar melhor.
A Lei 10.639 reconhece que vivemos em uma sociedade com múltiplas culturas. Falar em sociedades plurais é pensar na diversidade cultural, religiosa e étnica, e reconhecer a legitimidade de todas as suas expressões. Mas uma sociedade multicultural não é a fragmentação dela mesma em partes estanques, isoladas, e sim a combinação de pluralidades, intercâmbios e comunicações, que se expressam mediante suas culturas e produzem um ambiente efetivamente democrático. Pensar na sociedade brasileira como sendo multicultural pressupõe que ela seja constituída com base na democracia, a participação de todos os grupos sociais e culturais componentes da nação.
As instituições escolares desempenham um papel fundamental na conquista de uma sociedade mais justa e, sobretudo democrática. Uma educação multicultural reconhece que não vivemos num mundo homogêneo e admite a existência de diferentes grupos sociais. Essa é base da Lei 10.639/2003 — uma conquista que levou décadas de negociação, articulação política, trabalho intelectual e pressão do movimento negro, para promover a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96) e estabelecer a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na Educação Básica do país.
Uma lei criada para dar diretrizes e orientar a formulação de projetos de valorização dos afro-brasileiros e africanos, na imensa contribuição histórica e cultural que deram e dão ao país. Diretrizes e projetos comprometidos com a produção de relações étnico-raciais positivas, a que os novos conteúdos educacionais devem conduzir. Como ficou claro em parecer do Conselho Nacional de Educação sobre ela, de 2004.
“É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos (…). A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda sorte de discriminações”.
Ao reler esse documento histórico, coordenado por sua relatora, a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, não podemos deixar de celebrar a grande conquista que ele representa. Mas há desafios importantes a vencer, para que a Lei 10.639 ganhe efetividade. Os sistemas de ensino e os estabelecimentos educacionais, nos níveis de Educação Infantil, Fundamental, Média, de Jovens e Adultos, e Superior, ainda precisam converter em realidade alguns pontos essenciais do parecer técnico do CNE. Tais como:
– Garantia, pelos sistemas de ensino e entidades mantenedoras, de condições humanas, materiais e financeiras para execução de projetos, com o objetivo de Educação das Relações Étnico-raciais e estudo de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, assim como organização de serviços e atividades que controlem, avaliem e redimensionem sua consecução, que exerçam fiscalização das políticas adotadas e providenciem correção de distorções.
– Inclusão de personagens negros, assim como de outros grupos étnico-raciais, em cartazes e outras ilustrações sobre qualquer tema abordado na escola, a não ser quando tratar de manifestações culturais próprias, ainda que não exclusivas, de um determinado grupo étnico-racial.
– Introdução, nos cursos de formação de professores e de outros profissionais da educação: de análises das relações sociais e raciais no Brasil; de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racismo, discriminações, intolerância, preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade, diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas, de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais e do ensino e aprendizagem da História e cultura dos Afro-brasileiros e dos Africanos.
– Inclusão, respeitada a autonomia dos estabelecimentos do Ensino Superior, nos conteúdos de disciplinas e em atividades curriculares dos cursos que ministra, de Educação das Relações Étnico-Raciais, de conhecimentos de matriz africana e/ou que dizem respeito à população negra. Por exemplo: em Medicina, entre outras questões, estudo da anemia falciforme, da problemática da pressão alta; em Matemática, contribuições de raiz africana, identificadas e descritas pela Etno-Matemática; em Filosofia, estudo da filosofia tradicional africana e de contribuições de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade.
– Instalação, nos diferentes sistemas de ensino, de grupo de trabalho para discutir e coordenar planejamento e execução da formação de professores para atender ao disposto neste parecer quanto à Educação das Relações Étnico-Raciais e ao determinado nos Art. 26 e 26A da Lei 9394/1996, com o apoio do Sistema Nacional de Formação Continuada e Certificação de Professores do MEC.
A Lei 10.639 está em vigor e vem produzindo efeitos notáveis de mudança social e reposicionamento do negro na sociedade brasileira. Falta fazê-la valer em toda a sua extensão e avançar até constituir o país diverso, integrado e justo que podemos ser. Para a vida plena que queremos ter.
Notícias Recentes
Câmara de Salvador aprova projeto para adaptar capelos de formatura a cabelos afro
Dicas de desapego e decoração ancestral para o fim de ano com a personal organizer Cora Fernandes