Rael não para nunca. Desde que saiu do Pentágono, grupo no qual gravou quatro discos, ele investiu ainda mais nas batidas pop, reggae, canções com pegada deliciosamente radiofônicas sem deixar de transitar com naturalidade por parcerias diversas como Don L, Emicida, Rashid, Black Alien e Chico César. O rapper paulistano lançou na última semana o single ‘Passiflora’ em parceria com a cantora Céu e RDD (Rafa Dias, do ÀTTØØXXÁ)
O projeto é resultado da parceria do rapper como um dos escolhidos do #YouTubeBlackVoice, do Fundo Vozes Negras, que é um programa global criado para apoiar e promover artistas e times negros, fazendo com que eles gerem conteúdos e possam ter sucesso dentro da plataforma. “Sou muito fã da Céu desde o primeiro disco. Quando vi ela cantando ‘Concrete Jungle’ do Bob Marley and The Wailers, pensei ‘essa mina é das nossas’ e aí eu convidei ela para ‘Passiflora’ porque eu falo sobre a biodiversidade, natureza, e só faltava o céu, né?”, conta sorrindo o rapper.
Notícias Relacionadas
Juliana Alves reflete sobre 21 anos de carreira: "Conquistei respeito e reconhecimento que não tinha antes"
"Aos 50, quem me aguenta?", Edvana Carvalho fala sobre negritude, maturidade e o empoderamento feminino em seu primeiro solo no teatro
Desde o início da pandemia, Rael contabiliza dezesseis feats, tanto com pessoal da nova geração quanto com artistas que ele tem como referência, mas ele diz não poder revelar o nome dos medalhões porque faz parte de lançamentos futuros. No entanto, essa quantidade de parcerias não significam que venha disco novo em breve. “Talvez não seja hora de lançar um trabalho inteiro. Eu fico pensando se eu nem sei mais se eu vou lançar disco, sabe? As coisas estão tão rápidas, que as vezes você quer narrar uma história, contar, mas esse fluxo de dados é muito grande, um milhão de músicas por final de semana e praticamente esse modus operandi que se tornou a música, a música líquida, ouviu, bebeu, urinou, já era”, reflete o rapper que diz não ter ter ouvido muitos discos novos, com exceção de Anderson Paak e revisitações de antigas obras como discos do nigeriano Burnaboy.
O atual lançamento não tem o nome que tem por acaso. Rael mostra ao fundo a flor de maracujá (passiflora) que nasceu em seu quintal, sem saber se foi um passarinho ou o vento que trouxe, o que se sabe é que além da planta também veio a ideia da canção que tenta resgatar paz e equilíbrio em momentos tão conturbados.
O rapper não disfarça a frustração com o impacto que a pandemia teve no lançamento de seu disco ‘Capim Cidreira’, disponibilizado em 2019. “Eu tinha acabado de lançar um disco, em setembro de 2019, em novembro comecei a fazer show, tirei umas semanas de férias em dezembro e depois veio tudo por terra”, diz o rapper que lançou “Infusão” durante a pandemia, mas já não podia excursionar com os novos projetos que incluíram depois canções com Iza, Melim, Vitão e Jota Quest.
Como muitos artistas hiperativos, Rael buscou artifícios para não surtar durante o isolamento. “Para não surtar, mano, eu me entreguei totalmente a atividade física, meditação e música. Quando não estou conseguindo escrever faço um instrumental e vice-versa”, conta o autor do hits como ‘Envolvidão’ e ‘Aurora Boreal’.
Compor músicas que falam de amor ou busca por calma também é uma forma de se posicionar diante da situação do Brasil, guiado por um governo conservador. “É triste você encarar o fato que estamos no lugar mais atrasado do planeta. País continental, gigantesco com essa visão de fazenda com poste de luz. O Brasil é tipo isso. Não consegue ter avanço. É triste, né. Aí às vezes eu chamo umas ideias, tento trocar umas ideias e parece que você está em outro planeta, né? Tem muita gente que abraça essa postura, esse conservadorismo”, diz pensativo.
Rael não precisa ser provocado ou questionado para expor o que pensa. O pensamento fluido faz o link com os recentes acontecimentos que estamparam a tristeza nos olhares do povo preto. “Estamos na selvageria. Estamos numa guerra que nunca acabou. No meio da pandemia os caras têm coragem de mobilizar uma estrutura gigantesca para entrar na favela e matar gente. Ficou provado que existe uma estrutura que existe para matar mesmo. Você crescer na capital, por exemplo. Morria gente pra caramba, que era uma quebrada contra a outra. As pessoas se matavam no baile, na rua, eu ia para escola e via gente morta. Quando instalou o comando isso parou. Ficou bem claro que as outras mortes vinham da estrutura que vem do Estado”, argumenta o músico.
‘Passiflora’ tem uma levada pop/reggae que convida ao bem-estar do agora, fora das redes, e em conexão com a natureza em versos como “Obrigado por mais esse dia fornecido/ Mesmo com gravidade dos acontecidos/E de hora em hora tudo fica envelhecido/Vivo de agora, que amanhã não é garantido”, e nessa conexão com a natureza, Rael toca em um assunto que costuma ser tabu entre o cidadão médio brasileiro. “Esse poder da natureza…existem vários estudos agora, por exemplo, do canabidiol, que eu tomo para minha insônia. Tem vários medicamentos que as pessoas tomam para depressão, ansiedade e uma planta já faz isso. Se você pegar o cânhamo industrial, por exemplo, ele serve para indústria têxtil. Uma camiseta de cânhamo gasta menos que a de algodão e dura mais, dá para investir em cosmético. Se a gente abrir esse comércio, como vão ficar as pessoas que foram presas por causa de maconha? E essa reparação? Como vai se dar?”, questiona.
Embora muitas das composições mais conhecidas de Rael falem de amor, vida e relações familiares, há inúmeras canções no repertório do compositor tratando das dores do racismo e ele conta um pouco sobre como isso interfere no processo de composição. “Eu consegui criar uma rede de comunicação através do amor que eu falo nas letras. Tem gente que faz isso com excelência, como o próprio Emicida, o próprio Criolo. Eu também falo sobre racismo nas letras, mas eu penso ‘eu já vivi essa porra e não há letra, tweet, foto que poste que vai mudar isso. Beleza, uma letra vai chamar atenção, mas o que adianta se tem uma mega estrutura que tem milhões que foi feito para fazer isso?”, desabafa Rael apontando como soluções para o fim da guerra às drogas uma regulação, legalização e reversão do imposto em pesquisas científicas sobre o benefício do canabidiol.
Como muitos adolescentes pretos da periferia, Rael viu em Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay uma forma de empoderamento. “Racionais me resgatou. o bagulho me deu tanta autoestima que eu já colei e ‘pá’. Alguém levava uma e eu já arrebentava. Eu descolei que os caras tinham medo de mim por causa da cor, porque eu morava na favela e tinha a escola que era pública, mas era boa, então eu apavorava e eu creio que eu faço isso também”, diz
Na campanha das eleições de 2018, Rael lembra que falava sobre a escolha ser “entre um professor e um asno” e do quanto arrumou briga e perdeu seguidores, mas que não liga e acha que agora as pessoas querem cobrar por ele falar de amor. “Meu bagulho é mais na ação. Não fico no Twitter de bêbêbê”, diz.
Sobre as cobranças por posicionamento em cima de artistas pretos, Rael conta um caso da época em que a vereadora Marielle Franco foi assassinada no Rio. “Eu fui na Fátima Bernardes. Adoro a Fátima, sempre tratou a gente bem. Me convidou para falar de uma parada que não tinha nada a ver com o que vou falar. Eu chego no Rio e ligo a televisão, acabaram de matar a Marielle. Aí alguém da produção disse que estavam tentando chamar uma amiga da Marielle. Eu não conhecia a Marielle, poucas pessoas conheciam. Uma vereadora do Rio de Janeiro de um partido não tão grande que é o PSOL. Aí a mina disse que a amiga não queria vir mas que ‘o Rael está aí, ele fala’. Eu nem conhecia e ter que falar de uma pessoa que acabou de morrer. E o respeito? O Crivella já estava lá querendo ganhar nome em cima da mina. Aí o Movimento Negro chegou e ‘nossa que despreparo para falar sobre a morte da menina’. Como eu ia falar de uma moça que eu não conhecia direito e que acabou de morrer? E eu na televisão ao vivo”, revela.
O ocorrido deixou Rael com pé atrás e triste com as cobranças. “Por ser preto a gente sempre vai ser cobrado. Eu vivi essa violência, essa exclusão que a gente vive. Mas quando você está conseguindo aparecer um pouquinho, apagar os incêndios, fazer uma casa para minha coroa, as pessoas já te apontam: ‘tô te vendo’. Tá indo longe demais’, desabafa mais uma vez.
O artista apareceu na Times Square como um dos representantes do You Tube Black Voice e entende a dificuldade de ser reconhecido sendo uma pessoa preta. “Junto com Péricles, MC Carol e outras vozes pretas ao redor do mundo é uma grande honra e usar essa plataforma para isso foi do caralho. Estou animado. Difícil ser contemplado com alguma coisa, diz o rapper que também revelou ter investido num pequeno estúdio em casa, o que ajudou a produzir e se manter ativo durante a pandemia, embora a ausência de shows tenha impactado na renda. “Eu deixo de mensagem para quem está na música que invista na sua música. A melhor coisa que eu fiz para a pandemia sem saber que ia ter uma foi ter montado meu estúdio com minhas guitarrinhas, meu violão. Nada super caro, mas ajudou a me manter. A molecada estoura um single e já gasta 300 mil na noite, mas dinheiro não aceita desaforo”, aconselha.
Rael respondeu nossas perguntas sobre possíveis lançamentos e a indústria da música.
Nesses tempos de streaming , você acha que o disco ainda tem espaço?
“Eu acho que o disco não acaba. Quem gosta sempre vai fazer Eu tenho não sei quantos álbuns. Tenho com o Pentágono, com Emicida. A cada dois anos eu lançava um. Estou há 20 anos , então tenho uns 11 discos. Talvez diminua o público à procura de álbuns. Parece que as pessoas estão mais ansiosas e não tem muito tempo para ouvir aquela narrativa. As vezes só quando a pessoa está no hype, aí param e ouvem, mas de modo geral não ouço as pessoas dizendo que vão ouvir um disco e tal.
A galera do funk faz isso muito bem. Nunca lançaram um disco, lançam singles e são artistas gigantes. Um ‘case’ que essa parada de single também funciona”.
Tem disco novo em vista?
Fiz um disco de ‘afrofusion’, mas não vou lançar agora. Eu fiz muito feat. Estou me apaixonando novamente pelo reggae. Então acho que vou lançar algo nesse tipo. Até novembro vou lançar coisas. Não álbum, mas vou lançar algo.
Para os leitores do Mundo Negro, Rael deixa uma mensagem de esperança; “Voce merece amor, você merece ser bem pago, você merece ter uma vida gratificante dentro do que você faz, você merece ter esse êxito. Dizer que o sucesso é se manter vivo e que sorrir é um ato de resistência. O maior bem que você tem é você mesmo, parça. Arrume tempo para fazer coisas que você não tinha tempo para você fazer. Como diria Bruce Lee, ‘exercite seu lado fraco e você não terá ponto fraco”, conclui.
O rapper fará uma live especial de “Passiflora” junto com a cantora Céu no próximo sábado, 26 de junho, às 21h. Você pode conferir a live Rael & Céu AQUI. A música está disponível no Spotify.
Notícias Recentes
‘O Auto da Compadecida 2’: Um presente de Natal para os fãs, com a essência do clássico nos cinemas
Leci Brandão celebra 80 anos e cinco décadas de samba em programa especial da TV Brasil