Uma menina negra é xingada de macaca por uma colega de turma, em outro dia é chamada de neguinha feia com cabelo de bombril. No ano seguinte, em outra escola cria expectativa de fazer amizades, mas acaba sozinha durante todo o horário do recreio. No último ano do ensino fundamental, é excluída da apresentação de dança da festa junina da escola, o motivo: ninguém a escolheu como par na quadrilha. Este relato poderia ser sobre a sua infância. Se você é uma pessoa negra, provavelmente viveu algum episódio de racismo na escola.
Para confirmar algo que já imaginávamos, um dado científico. O ambiente escolar é o principal local onde os brasileiros sofrem racismo, conforme mostrou uma pesquisa recente. A investigação concluída em julho de 2023, foi realizada pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (IPEC), contratada pelo Projeto SETA e pelo Instituto de Referência Negra Peregum. De acordo com os resultados, a cada 10 pessoas que afirmaram ter sido vítimas de racismo no Brasil, 3,8 sofreram num espaço de educação formal (escolas, faculdades ou universidades).
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A escola é o espaço onde ocorrem as primeiras violências raciais e as crianças negras são as principais vítimas. Mas não são as únicas. O racismo no ambiente escolar afeta a todos. Concordamos que a educação formal pode ser (e é) um meio de transformação social e da diminuição das desigualdades e das discriminações. Porém, a educação também pode servir para veiculação e reforço de ideais racistas, sexistas e homofóbicos. Diversas vezes, as práticas educacionais fortalecem valores eurocêntricos expostos, inclusive em diferentes materiais didáticos. Não podemos perder de vista que a escola é um produto social e por isso reflete pensamentos e construções realizadas por uma dada sociedade. Se vivemos numa sociedade racista a escola também será racista, construir uma realidade diferente (uma educação antirracista) é uma responsabilidade de todos, tanto dos profissionais da educação, do Estado, dos movimentos sociais, quanto sua e minha.
Em falar em movimentos sociais, vale lembrar que a questão do acesso à educação para a população negra no Brasil sempre foi pauta do Movimento Negro. Desde o pós-abolição da escravatura em 1888, e com a proclamação da República no ano seguinte, as organizações negras já tinham em suas reivindicações a educação como questão prioritária, uma vez que o analfabetismo e o lento acesso às escolas oficiais se colocaram como um dos principais desafios a serem enfrentados. Nesse cenário, uma organização se destacou, a Frente Negra Brasileira. A associação de caráter político foi criada em 1931, em São Paulo, mas logo se espalhou para outras cidades e o plano era alcançar uma proporção nacional. A Frente Negra tinha como um dos objetivos criar meios de integrar o negro na sociedade nos aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos. A instituição abriu escolas e promoveu cursos com o objetivo de alfabetizar jovens e adultos negros.
A professora e primeira reitora negra de uma universidade federal no Brasil, Nilma Lino Gomes argumentou que o Movimento Negro é um ator político que ensina a sociedade sobre as relações étnico-raciais. Um momento fundamental para o Movimento Negro contemporâneo, foi a criação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que ocorreu nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, na noite do dia 18 de junho de 1978, em plena ditadura civil-militar. Em 1979, a instituição foi rebatizada e passou a se chamar Movimento Negro Unificado (MNU). Com dimensão nacional, essa organização tinha entre suas pautas centrais o acesso à educação na luta contra o racismo. No século XX, organizações negras já buscavam um ensino e aprendizagem que valorizassem a resistência e a força negra, ao contrário do discurso educacional que operava na época. Onde, em resumo, o sujeito negro era quase que sinônimo de escravo (para usar as palavras da época) e vivia numa completa passividade. O pouco da história da população negra era contada a partir do 13 de maio e da valorização da princesa Isabel – “a heroína que libertou os escravos”.
A fotografia que compõe este texto representa a luta do Movimento Negro por uma educação que incluísse a história e a cultura dos africanos e dos seus descendentes. O registro é de Juca Martins e retrata uma manifestação organizada pelo MNU da Bahia, que ocorreu na reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1981, em Salvador. Os militantes ficaram indignados pois na reunião anual da SBPC não houve uma discussão racial, assim surgiu a faísca para a manifestação.
No processo de redemocratização do Brasil e nas discussões para a formulação da Constituição Democrática o Movimento Negro se fortaleceu ainda mais e com destaque para a pauta educacional. Um dos resultados, ou produtos das incansáveis lutas promovidas pelos militantes foi um conjunto de políticas públicas, com objetivo, por exemplo, de construção de uma educação emancipatória e multicultural.
Um dos frutos dessa luta histórica, foi a aprovação da Lei 10.639. Você sabe o que diz essa lei? A Lei 10.639 tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira em todos os estabelecimentos de ensino públicos e privados, em todas as séries escolares. É provável que você não conheça essa lei e pode concluir, “deve ser uma lei recente”, mas não. Em 10 de janeiro de 2023, a lei completou 20 anos. A 10.639 alterou a principal lei de educação do Brasil, a Lei de Diretrizes de Base da Educação Brasileira (LDB), a Lei 9.394 de 1996. Está na LDB, mais especificamente no seu artigo 79B que o dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, deverá ser incluído no calendário escolar. Os conteúdos ligados à História e Cultura Afro-Brasileira precisam constar em todo o currículo escolar. Você leu certo, em todo o currículo. Então, não é a professora ou o professor de História ou de Literatura, mas o de Matemática, Química, Física e todas as outras matérias.
Por fim, é importante reconhecer o empenho do Movimento Negro contemporâneo em lutar e sair vitorioso no campo das políticas públicas educacionais. Concordo com a pesquisadora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva em seu artigo, Educação das Relações étnico-raciais nas instituições escolares, em que ela conclui que “o problema não está, portanto, na falta de políticas públicas, tampouco de orientações para implementá-las […], mas em projeto de sociedade que ainda se faz dominante, projeto esse que tenta eliminar as diferenças étnico-raciais, folclorizar as marcas culturais, sabedorias, conhecimentos e tecnologias que não de raízes europeias”.
Lembra do relato do início? Aquela menina negra era eu. Durante todos os anos da minha vida escolar nunca escutei a história de Dandara, Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama. Cresci sem saber quem foi Tereza de Benguela. Mas posso garantir que nenhum aluno tenha passado por isso em minhas aulas. Hoje, como professora de história, busco cotidianamente a construção de uma educação antirracista. Acredito no grande poder de transformação social da educação e no papel que ela pode cumprir no processo de fortalecimento das identidades negras.
Referência: Foto de Juca Martins/Olhar Imagem. “Manifestação durante a reunião da SBPC, Salvador, BA, 1981”. Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp. A foto foi publicada pela primeira vez no jornal Voz da Unidade, em 1981.
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