
Superdotação e altas habilidades tem sido um assunto recorrente nas redes sociais, mas este ainda é um cenário de pouco debate e reconhecimento entre as pessoas negras. O psiquiatra Lucas Mendes, 36 anos, descobriu apenas recentemente que é uma pessoa com superdotação, com o auxílio da neuropsicóloga Luciene Pires. Sendo um homem negro, ele conta que mesmo tendo passado em primeiro lugar no vestibular de Medicina aos 17 anos e conquistado vaga em uma das residências em Psiquiatria mais concorridas do país, nunca teve o diagnóstico sequer sugerido.
“Ninguém conseguiu considerar nos ambientes que eu passava, que um cara preto pudesse ser superdotado, mesmo vendo que tinha uma inteligência e um desempenho muito grande”, afirma em entrevista ao site Mundo Negro. Segundo Mendes, esse apagamento fez com que ele passasse anos desmerecendo suas conquistas, atribuindo-as à sorte ou ao apoio de terceiros. “Eu costumo dizer que eu passei com 17, mas eu demorei 17 anos para me apropriar do que eu fiz e para ter realmente orgulho do que eu fiz”, conta. Para ele, a invisibilidade do tema atinge de forma ainda mais dura pessoas negras, cujas capacidades intelectuais muitas vezes não são reconhecidas ou são distorcidas.
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Lucas também explica o que são as altas habilidades e a superdotação. “São conceitos diferentes, mas que se resumem a mesma coisa, que é o potencial cognitivo de um indivíduo em áreas específicas. E aí que entra, por exemplo, um potencial elevado para destreza motora fina, que aí pode ser pintores, escultores, artistas, um potencial para destreza motora mais ampla, um atleta. A ideia das habilidades é que a gente tem múltiplas habilidades cognitivas que são desempenhadas de diversas formas.”

Leia a entrevista completa abaixo:
MN: O que exatamente significa “superdotação” e “altas habilidades”? Existe diferença entre os dois conceitos?
Altas habilidades e superdotação são conceitos diferentes, mas que se resumem a mesma coisa, que é o potencial cognitivo, especialmente cognitivo, de um indivíduo em áreas específicas. E aí que entra, por exemplo, um potencial elevado para leitura, um potencial elevado como músicos, para audição, para percepção de ritmo, um potencial elevado para destreza motora fina, que aí pode ser pintores, escultores, artistas, um potencial para destreza motora mais ampla, um atleta e por aí vai. Então a ideia das habilidades é que a gente tem múltiplas habilidades cognitivas que são desempenhadas de diversas formas e que algumas pessoas têm elas maiores ou menores. E aí quando a gente está falando de superdotação é um potencial global aumentado, tudo aumentado. Essa é uma das linhas de teoria quando se está falando de altas habilidades, são ou todas, ou várias, ou algumas habilidades específicas aumentadas ou várias habilidades específicas aumentadas.
Pro MEC [Ministério da Educação] e para o Ministério da Saúde, superdotação e altas habilidades são a mesma coisa. Ele é usado como conceito para formalizar o diagnóstico de avaliação educacional infantil como a mesma coisa. Alguns autores colocam no mesmo lugar e tem inclusive conceitualizações diferentes. De múltiplas inteligências, de potencial, de talento inato, então, são conceitos complexos. No Brasil, pelo MEC, é usado muito como o mesmo significado. Nas testagens neuropsicológicas, que são um tipo de exame que usa para fazer o diagnóstico, muitas vezes eles vêm como sinônimos. Mas, dependendo da linha e aí de forma didática, não é necessariamente isso, mas como é um jornal de forma didática.
MN: Como o imaginário social sobre inteligência e genialidade — muitas vezes associado a pessoas brancas — interfere na autoimagem e no desenvolvimento de pessoas negras superdotadas?
Eu, particularmente na minha experiência profissional, tenho recebido muitos pacientes na vida adulta, eu não atendo crianças e adolescentes, adolescentes eventualmente no contexto específico, mas trabalho mais com adultos, e tenho recebido muitos adultos com altas habilidades de superdotação. Alguns de um nível de excepcionalidade muito alto, mas que não tinham essa auto percepção e que isso gera uma distorção de auto percepção que a pessoa não consegue entender o funcionamento dela. Inclusive, os problemas do funcionamento, as dificuldades de se enquadrar em grupos, de socializar, de pertencer a grupos acadêmicos, de escola, de tudo, de lidar com autoridades intelectuais, e essas pessoas tentam acreditar que isso é um problema delas. Essa é uma distorção racial frequente, porque o racismo faz uma tradução simultânea de tudo que é bom em algo ruim, então a pessoa começa uma perseguição por um problema, e isso já aconteceu várias vezes, a pessoa vem atrás de um problema e problemas que já foram sugeridos, inclusive pelo viés racista, “ah, é borderline, é bipolar”, e quando você vai aprofundando tá em outro lugar. É uma intensidade emocional muito grande que vem de uma superdotação, mas um funcionamento muito acima da média, e aí entra o outro fenômeno racial que é o da validação externa.
É muito, muito, muito menos frequente a validação externa dessa superdotação e altas habilidades para pessoas negras e para as pessoas brancas inclusive é validado mesmo não tendo. Isso gera quase um sequestro e aí vem um fenômeno que é: ou você espera encontrar em pessoas brancas uma genialidade às vezes, até força com que ela esteja lá não estando. Às vezes é uma habilidade específica que inclusive não é nem uma habilidade nata, é um esforço repetitivo com a pessoa desenvolveu a habilidade e destitui isso quando ele existe numa pessoa negra. Então é bem comum, a gente vê isso muito em ambiente acadêmico. Especialmente eu vejo em pós-graduações, mestrado, doutorado, esse olhar que tende a hipervalorizar a inteligência da pessoa branca e desvalorizar da pessoa negra. E aí com certeza a autopercepção de valor cognitivo, intelectual, e aí vale para tudo, ela fica distorcida e como todo efeito do racismo ele faz uma distorção invertida negativa, então o que é bom, transforma em ruim. E aí a criança é o problema, criança que reclama muito, é uma série de questões.
MN: Quais são os sinais mais comuns que podem indicar que uma pessoa tem altas habilidades? E como investigar?
Essa é uma pergunta difícil, que eu particularmente não gosto muito, porque eu acho que tem que ser cuidadoso. Por exemplo, especialmente numa matéria, e não correr o risco de simplificar uma coisa que é muito complexa e que aí ocorra numa coisa que a gente vê bastante ultimamente e crítica muito, que é o hiperdiagnóstico de pessoas por detalhes. Então assim: “se a pessoa tem um hiperfoco ela é autista”. E aí eu realmente prefiro não dizer quais são os sinais mais comuns, porque é muito heterogêneo e é difícil de precisar, porque envolve um desempenho global da pessoa no ambiente onde ela está. Então vai variar de estímulos que ela recebe e tudo mais, mas no geral é avaliado pelo desempenho cognitivo, aí entra uma questão. Tem uma distorção muito frequente que a gente entende desempenho cognitivo como nota na escola. E nota na escola é uma das avaliações de um tipo mais específico de desempenho cognitivo que pode ter inúmeros outros. Motor, subjetivo, emocional, por exemplo, que é bem interessante de ver pessoas que têm uma habilidade emocional muito boa de comunicação e interação social, de linguagem, pessoas muito persuasivas e que têm uma capacidade de comunicação com outras pessoas muito interessante, muito grande. Então é muito difícil dizer sinais mais comuns porque varia, por exemplo, de que tipo de habilidade vai depender, o que você vai ver e o contexto. Então não dá nem para dizer isso.
E aí como é que investiga? Avaliação psicológica, avaliação pedagógica, ou psicopedagógica. Uma das formas interessantes é a testagem neuropsicológica, que é um exame realizado por psicólogos ou psicólogas, e que avalia objetivamente as funções cognitivas, e aí ele dá uma estimativa do coeficiente intelectual, do QI. Esse é um exame objetivo bem interessante para complementar a avaliação, e aí avaliação psiquiátrica, psicológica e pedagógica. Esses três juntos conseguem fazer esse olhar ampliado, porque a superdotação de altas habilidades é uma condição que é a forma de existir da pessoa. É o jeito dela, é a forma como ela veio, é a estrutura neurológica e psíquica dela. Então, você tem que ver aquilo ao longo da vida toda. Claro, ajustado para o contexto, mas tem que estar lá a vida inteira, então tem que fazer essa avaliação global. “Fiz uma prova de concurso difícil, passei, logo sou superdotado.” Não é simplista assim. Então eu tomaria esse cuidado. O melhor é procurar avaliações bem de qualidade para poder saber do que a pessoa irá rastrear por ela mesma. Até porque a gente já tem um senso comum e se tem um indício, vai atrás.
MN: Isso é possível ainda na infância ou adolescência?
É a melhor época. Quanto mais cedo, melhor. Claro, não vai fazer isso no bebê, mas quanto mais cedo for possível avaliar globalmente o funcionamento cognitivo de um indivíduo e ajudar ele a entender como ele é e até como ele destoa da média das pessoas, porque essa é a grande questão. Pessoas superdotadas e com altas habilidades, elas fogem da média de nível intelectual ou de nível de habilidades, e isso pode ser muito bom se ela desenvolver as habilidades ou entender o funcionamento dela, entender as questões envolvidas, as reações emocionais intensas, algumas características específicas dessas pessoas, isso vai ajudar muito, mas também pode ser uma fonte de sofrimento imensa por a pessoa não se enquadrar. Por ela não conseguir seguir um regime escolar habitual, por exemplo, porque ela acha chato, ela já entendeu as coisas, então é bem complexo.
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