É mais fácil construir filhos fortes do que reparar homens quebrados. − Frederick Douglass

Texto: Ricardo Corrêa

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As escolas entraram em recesso e, consequentemente, o impiedoso racismo que ocorre dentro de seus espaços. Devemos enfrentar os discursos que romantizam a instituição como se ela fosse um espaço acolhedor das diferenças, em que a socialização, a construção de sonhos e a produção de conhecimentos são qualidades inquestionáveis. Sejamos sinceros, a escola para as crianças negras é de uma violência imensurável. Isso precisa ser denunciado por todos os cantos, afinal, o silêncio não protege ninguém, como disse a escritora Audre Lorde.

Os meus pais não me ensinaram a enfrentar o racismo. Essa foi uma lacuna que culminou na minha inação diante dos ataques das crianças brancas. Elas não sossegavam um minuto com as brincadeiras racistas, deixando-me bastante abalado. Porém, reconheço que naquela época o contexto era muito diferente. Estávamos saindo de uma ditadura militar, e o racismo não era debatido de maneira aprofundada e publicamente. Das poucas vezes que entrava em pauta, o embuste conhecido como democracia racial silenciava as críticas, e impossibilitava o aprofundamento nas questões raciais. Os negros tinham que aprender na prática. Através da dor e sofrimento. Notavam que no bairro que moravam, de maioria negra, a pobreza reinava. Que o camburão “enquadrava” as pessoas negras, e deixava os brancos à vontade. Que na televisão os brancos interpretavam os ricos, e os negros, os pobres. Entre outras situações em que a hierarquização da cor da pele estava escancarada.

A minha mãe comentava “gosto dos meus filhos limpinhos, não quero que fiquem fedendo igual a macacos”, “cabelo ruim tem que estar baixinho para não levar piolho à escola”. Ela ouvia reclamações dessa natureza, nas reuniões escolares, e os reproduziam. Os pais e os professores sempre acusavam os alunos negros, como se os brancos não pudessem ser os culpados pelos piolhos e cheiro forte. Eram simplesmente suposições racistas. Mas, o racismo fez com que a minha mãe assimilasse esses pensamentos. Também me lembro do conselho do meu pai “você tem que ser duas vezes melhor que os brancos para ser alguém na vida”. Ele nem imaginava que isso nunca teve validade. Os brancos venderam a ideologia do esforço individual como passaporte para a felicidade, e não avisaram que o racismo limitava o alcance. “Ser alguém na vida” continuava sendo uma utopia.

Foto: Reprodução / Citizen Ed.

Eu somente comecei a ter consciência racial quando tive contato com a capoeira, o rap nacional, o samba, nos cursinhos populares e movimentos sociais dentro universidade, mas até isso acontecer passei por maus bocados nos espaços escolares, aliás, a  intelectual Nilma Lino Gomes (1996) escreveu uma importante reflexão

A escola não é um campo neutro onde, após entrarmos, os conflitos sociais e raciais permanecem do lado de fora. A escola é um espaço sociocultural onde convivem os conflitos e as contradições. O racismo, a discriminação racial e de gênero, que fazem parte da cultura e da estrutura da sociedade brasileiras, estão presentes nas relações entre educadores/as e educandos/as.

Os professores tinham um tratamento diferenciado com os alunos, dependendo da cor da pele. Os brancos recebiam mais atenção, respeito e cuidado. No caso dos negros, a atenção era limitada e ríspida, alicerçada no racismo. Isso prejudicava o nosso aprendizado. Havia momentos em que os alunos  brancos se organizavam em grupos para trabalhos, brincadeiras, deixando-nos isolados. Eles curtiam apelidar a gente de maneira bastante estereotipada. Não vou citar alguns exemplos, pois a raiva me consome só de lembrar. E quando reclamávamos aos professores, tomávamos um esculacho. Em certas situações, eles mandavam bilhete para os nossos pais comparecerem à escola. “A culpa foi do seu filho que mexeu com o coleguinha”,  diziam. Quando sumia algum material escolar, na sala de aula, a desconfiança recaia sempre nas crianças negras. E nem vou entrar no campo dos conteúdos pedagógicos para não esticar ainda mais o texto, mas deixo registrado que ainda sofremos inúmeros desafios para a aplicação da Lei 10.639/03, que trata do ensino da história e cultura afro-brasileira.

Essas experiências racistas podem desencadear problemas psicológicos, que se desenvolvem durante o processo de crescimento das crianças negras, e demandando tratamentos especializados no campo da saúde mental. No entanto, a ausência de condições econômicas impede que consigamos arcar com os custos, e os traumas acabam sendo os companheiros indesejáveis para o resto de nossas vidas. Esse é um exemplo da eficácia do racismo estrutural, acorrenta os negros por todos os lados deixando mínimas as chances de superação.

Por todas essas razões, conduzir as crianças aos saberes da cultura negra é construir a resistência antirracista para o presente e o futuro. Devemos inseri-las em uma atmosfera de cultura africana e afro-brasileira para que compreendam a própria identidade e fortaleçam a autoestima. Essa seria uma das maneiras de mitigarmos toda carga de violência sofrida nas escolas. Utilizemos a literatura infantil, os brinquedos, os desenhos, o entretenimento em geral, que contenha elementos que se pareçam e dialoguem conosco. Diferente da época dos meus pais, não há desculpas para não sentarmos com as nossas crianças. Aproveitemos o recesso escolar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Casa Civil, Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Brasília, DF.

GOMES, Nilma Lino. Educação, raça e gênero: relações imersas na alteridade. Cadernos Pagu: raça e gênero, Campinas: Unicamp, v. 6-7, p. 67-82, 1996.

LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências.Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

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