As impossibilidades de viver a infância do menino negro no Brasil

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As impossibilidades de viver a infância do menino negro no Brasil
Foto: Reprodução/pikisuperstar

Texto: Luciano Ramos (Especialista em Masculinidades Negras)

Segundo o relatório Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes, no Brasil entre os anos de 2021 e 2023, foram assassinados, pelo menos, 9.328 crianças e adolescentes negros. E destes assassinados, 90% eram meninos. Há uma necropolítica em curso no Brasil e essa denúncia já é conhecida e reconhecida por organismos nacionais e internacionais. Aqui, eu quero analisar com você, por dentro das masculinidades iminentemente em risco ou das possibilidades de masculinidades interrompidas, já que esses meninos não chegam a se tornar adultos. Os meninos que crescem, desde muito cedo já são vistos como adultos desde a infância: o famoso fenômeno da adultização de crianças negras (e como já é sabido para muitas pessoas, os meus artigos aqui são para dialogar sobre as masculinidades negras. Então, vou falar dos meninos). 

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Os corpos dos meninos negros não são olhados na perspectiva do cuidado. Ao contrário, esses corpos são postos a margem do cuidado. Não é exagero dizer que ele é visto como um corpo “marginal” (leia-se à margem). Outro dado importante para pensarmos sobre a ausência de cuidado em relação aos meninos negros é a Situação do Trabalho Infantil. Os pretos e pardos representam quase 70% das vítimas de trabalho infantil no Brasil, onde, trabalhando nas ruas, a maioria são os meninos. As meninas negras representam a maioria em trabalhos infantis domésticos. Constantemente, ainda escutamos frases como “Olha que menino esforçado!” ou “Melhor assim, trabalhando, ganhando o dinheirinho dele, do que roubando.”. Essas frases são cruéis e violentas. A primeira fala da ideia de esforço pra alguém que, na fase em que está desenvolvendo essa atividade deveria estar brincando, sonhando e se desenvolvendo física, psicológica e cognitivamente. A segunda coloca o menino negro em duas únicas possibilidades que, a partir da perspectiva do racismo ele está fadado a ser e a performar: 1- o trabalho forçado; 2- o possível criminoso (como ameaça social). 

Uma vez, um jovem negro me disse que a transição da ideia de infância para adolescência do menino negro, se deu para ele quando começou a ouvir os “clicks” das travas das portas dos carros, enquanto ele transitava nas ruas. Esse é o som mais ouvido por meninos que trabalham nas ruas. Quem não lembra da emblemática Chacina da Candelária, onde 06 adolescentes e 02 jovens foram mortos no Centro do Rio de Janeiro? Os meninos que ali estavam, vivendo nas ruas do centro da cidade eram negros e esses corpos foram assassinados, brutalmente. Essa é a expressão brutal do racismo.

Historicamente, houve no Brasil a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor). A Fundação, nascida em 1964, no período da ditadura militar, era um espaço, extremamente violento, e que tinha, em grande medida os meninos negros. A “correção dos corpos”, prática comum do período da escravização dos negros, era uma prática muito presente neste espaço. Os meninos negros “depositados” neste lugar, em que para muitas famílias era visto como um lugar em que seu filho seria cuidado e teria elementos básicos como alimentação e escolarização, na verdade eram espaços de violação de direitos básicos e de grande violência física e psicológica, relatados por alguns homens que, na infância, passaram por esses lugares. Há relatos constantes que, pelas situações de violência ali vivenciados, os meninos, continuamente fugiam das sedes da FUNABEM. E quando encontrados sofriam mais violências. Perceba se isso não soa familiar com a ideia dos negros que fugiam e eram encontrados pelos seus senhores, e ao serem encontrados, sofriam mais violências. 

30 anos depois da Chacina da Candelária, os meninos negros seguem sendo assassinados pelo Estado brasileiro ou pelas chamados “representantes do Estado”. Em estudo do UNICEF e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, foram 13,5 mortes por dia, em média de crianças e jovens negros assassinados no Brasil. Mais de 2 crianças e jovens mortos por hora. Esses dados deveriam nos mobilizar, completamente, enquanto sociedade. Há uma epidemia de morte de meninos negros no Brasil. Uma sociedade que dorme, tranquilamente, com esses dados está adoecida. Essa é a expressão máxima do racismo. 

Meninos negros, que parte racista da sociedade insiste em tratar como “menores” (termo que advém do antigo Código de Menores (legislação anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente), são os indivíduos que os índices da Educação no Brasil nos mostram que, ainda, são os que não estão na segunda etapa do ensino fundamental e/ou que não retornam para a escola no ensino médio, pois estão buscando os trabalhos, que majoritariamente, são subalternizados. Isso é a manutenção da miséria a que os homens negros estão submetidos. Alguns teóricos vão denominar como racismo sistêmico. Não é possível olhar o fenômeno da evasão escolar sem fazer a leitura de raça e gênero, para pensar em práticas metodológicas assertivas para manutenção de meninos e meninas negros e negras nas escolas. A escola é, ainda, 20 anos depois da Lei 10.639/2003, um espaço profundo de violências raciais contra crianças e adolescentes negros. Esse fato, aliado às vulnerabilidades financeiras a que esses meninos vivenciam, os retiram da escola precocemente. 

Fechando esse texto, é necessário, também, pensar nos meninos negros que são adotados por famílias brancas ou filhos de relações interraciais que, muitas vezes, vivenciam práticas racistas no âmbito familiar, nos espaços de socialização (como escolas) ou nos espaços que suas famílias circulam. Algumas Defensorias Públicas solicitam que seja retirado o campo etnia do cadastro de crianças aptas para o acolhimento, pois, segundo o Conselho Nacional de Justiça, 06 em cada 10 famílias adotantes no Brasil buscam por crianças brancas. E os que adotam crianças negras, apresentam predileção pelas meninas. Há, também, um grande índice de devolução de crianças negras adotadas por famílias brancas. Sob a justificativa de não adaptação essas famílias devolvem a criança para as casas de acolhimento. Esse processo é traumático para esses meninos e meninas. Todavia, a desumanização dos corpos negros, estabelecida pelo racismo, faz com que essas famílias não olhem essas crianças como dotadas de emoções e sentimentos. Por isso, podem ser objetificadas. Há um debate em curso sobre o racismo na adoção que precisa ser mais explorado pela sociedade brasileira. A assistente social baiana Denise Ferreira, que atua no sistema de justiça traz à tona esse debate. Assim como alguns grupos de famílias adotantes frequentam encontros para dialogar sobre racismo. 

Esse é um tema que nos apresenta muitas camadas. Não é possível esgotar todas nesse texto. Mas é um chamado a reflexão e a ação. Não há fórmula mágica. Letramento racial em todos os espaços é um primeiro passo. Humanizar os meninos negros é um passo importante. Reolhar os meninos negros a partir de seus diferentes ciclos de vida é um primeiro passo para humanizar. A política pública em todos os âmbitos olhar para os meninos negros a partir da perspectiva interseccional. Olhar, atentamente, as suas necessidades e buscar corresponder a elas. Assim, começaremos o processo de mudança. 

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