Texto: Thiago André
No ano 2000, o geógrafo e pensador Milton Santos (1926-2001) escreveu o seu emblemático ensaio “Ser negro no Brasil de hoje”, onde ele questiona a ideia de uma democracia racial no Brasil e denuncia as hipocrisias que ainda sustentam nosso racismo de cada dia. Mais de vinte anos depois, releio o seu texto e percebo que pouca coisa mudou. Ser negro no Brasil continua sendo uma tarefa difícil.
Notícias Relacionadas
O Brasil registra menor índice de jovens “nem-nem ou sem sem” da série histórica
Celebrando a Amazônia no palco: Jeff Moraes e a grandiosidade cultural do Pará
Aqui, pretos e pardos são maioria, representando 55% da população, mas vivem menos e em piores condições. Ocupam os subempregos e os trabalhos análogos a escravidão, são a maioria dos analfabetos e formam a maioria nas prisões. Enquanto brancos têm as melhores oportunidades de educação e renda, pessoas negras figuram como as principais vítimas da violência, da fome e das epidemias.
Boa parte da sociedade brasileira aprendeu a agir com naturalidade diante da desigualdade racial. Alguns, inclusive, escolhem deliberadamente negar essa realidade, insistindo na falsa ideia de uma “harmonia racial”. A esse jogo indecente de negacionismo e indiferença, Milton Santos deu o nome de “apartheid à brasileira”.
Para muitos a ideia de existir um “apartheid à brasileira” soa como exagero retórico. Afinal, ao que se sabe, aqui nunca teve mecanismos legais de segregação racial. Mas não é bem assim.
No último ano, me debrucei sobre este tema e fui buscar, em nosso passado, as raízes legais da nossa desigualdade racial. Descobri que, diferente do caso sul-africano e norte-americano, o Estado brasileiro desenvolveu mecanismos dissimulados de segregação.
Nos primeiros meses após a Abolição, já se discutia a possibilidade de criar um ordenamento jurídico para controlar e disciplinar os libertos. Um código que pudesse dar um verniz de legalidade às doutrinas pseudocientíficas e racistas que orientavam o pensamento das elites nacionais.
Por isso, após a Abolição, a população negra não recebeu um projeto de inclusão; recebeu um Código Penal que criminalizava pessoas sem emprego formal ou sem residência fixa. E quem, dois anos depois da Abolição, compunha essa massa de descamisados e sem moradia regular? Os negros recém-libertos. Sem mencionar a palavra “raça”, nosso primeiro Código Penal criminalizou a vulnerabilidade social dos negros.
Esse é só um exemplo de como o “apartheid à brasileira” se desenvolveu nas entrelinhas das leis. Ao longo do tempo, muitas outras leis parecidas com essa representaram um entrave para o desenvolvimento da população negra. No último ano, me dediquei a pesquisar e escrever sobre essas leis e as pessoas que foram afetadas por elas.
Este trabalho completo foi lançado como uma áudio série documental chamada Apartheid Tropical. Este é o resultado de uma investigação cuidadosa que contou com a colaboração de historiadores, sociólogos e ativistas, trazendo à tona vozes que muitas vezes não são ouvidas. É a consolidação de uma investigação que dá pistas de que não chegamos neste estado de coisas por acaso. Nossa desigualdade fez parte de um projeto de país.
Como escreveu Milton Santos, ainda é urgente reagir contra o “apartheid à brasileira”.
Thiago André é acadêmico de História, criador do podcast História Preta e autor e narrador da áudio série Apartheid Tropical pela Audible.
Notícias Recentes
Projeto Paradiso e Empoderadas anunciam residência para roteiristas negras na Espanha
Médico recém-formado é condenado a pagar R$ 550 mil por fraude em cotas raciais na UFAL