Por Caique Nucci.
De acordo com o dicionário, moda significa: 1. Conjunto de opiniões, gostos, assim como modos de agir, viver e sentir coletivos. 2. abs. O uso de novos tecidos, cores, matérias-primas etc. sugeridos para a indumentária humana por costureiros e figurinistas de renome. Quando paramos para observar a indústria de moda hoje, encontramos atrelada à ela palavras como luxo, desejo, riqueza e poder. É comum nos depararmos com pessoas que ainda carregam a ideia de que trabalhar com moda é “coisa de burguês.” Para conseguirmos entender melhor as raízes desse pensamento, precisamos fazer uma viagem histórica para os primórdios da
humanidade a fim de encontrarmos os pontos principais da construção e transformação do significado dessa palavra.
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Começando pelo período Paleolítico, que é a parcela de tempo que corresponde desde às origens do homem até 8.000 A.C, os primeiros seres humanos eram nômades e viviam se deslocando em busca de melhores condições de vida. Nesse período, conhecido como Pedra Lascada, o Homo Sapiens realizava a caça de animais de grande porte(renas e mamutes) através da invenção de diferentes armadilhas para dois principais fins específicos: alimentação e aquecimento. A camada grossa de couro com pêlos dos animais abatidos era utilizada como manto para aquecer o corpo e revestir o interior das cavernas que esse grupo habitava temporariamente. Além disso, carregar uma camada grossa de couro de animais nas costas também servia como representação de força e emitia o sinal de que aquele indivíduo possuía grande habilidade com a caça, tornando-o assim, através deste e de outros processos, o chefe da tribo.
Quando avançamos um pouco mais no tempo e observamos as organizações de povos das civilizações antigas Africanas, também encontramos sistemas parecidos de comunidades desenvolvidas. Chefes de tribos empunhando suas lanças com dentes de animais capturados na ponta, capas de pêlos nas costas e até mesmo, ossos de animais representando colares e amuletos de proteção. Até aqui, a moda – se assim podemos dizer – já era utilizada para distinção de quem era quem, e o que esse indivíduo representava dentro do grupo.
Abrangendo pequenas regiões, dada a falta de globalização e quilômetros de terra separando os povos nesse período, a moda não era usada como ferramenta de opressão e segregação, mas sim como exibição de crenças e cultura.
Dando um largo salto na linha do tempo e aterrissando na França, em específico no período de 14 de maio de 1643 a 1 de setembro de 1715, que corresponde aos 72 anos de reinado de Luís XIV(conhecido como o Rei Sol), conseguimos encontrar aqui, um exemplo sólido de como a moda era utilizada como ferramenta detentora de poder, sinônimo de riqueza e arrecadação de fortuna.
Depois de dois séculos com a Espanha dominando a Europa e desfrutando de sua Idade de Ouro – acumulando um vasto império global que alimentou uma economia em ascensão – a indumentária espanhola era estreita, rígida e predominantemente preta. Como forma de posicionamento e articulação política, Luís XIV começa a propagar na França a ideia de que o luxo era o novo ideal. Roupas, tecidos, jóias e móveis começaram a ser desenvolvidos no próprio Estado, o que fazia a economia girar dentro do país, gerando emprego para seus súditos e transformando a França em líder mundial de bom gosto e tecnologia. (Esse acontecimento antecedeu a Revolução Francesa, que aconteceu em 1789, resultado da desigualdade entre diferentes grupos sociais e a crise econômica vinda dos excessivos gastos para bancar os luxos da corte francesa).
Banhada por um estilo colorido, brilhante e marcante, todos os produtos tinham tempo certo para serem exibidos, sendo
Versailles o grande palco desse desfile, deixando a França sempre à frente no que significava ditar moda, arte, música e cultura. O Rei Sol acreditava que o luxo era necessário não só para a saúde econômica da França, mas para o prestígio e sobrevivência da própria monarquia.
Aqui, em meio ao século XVII, começamos a perceber como a moda também pode ser utilizada como pilar de sustentação para regimes opressores e governos absolutistas, principalmente para a distinção de pessoas em classes sociais.
Progredindo mais um pouco na linha temporal, dessa vez concentrando nosso olhar para os Estados Unidos em 1983, no bairro do Queens, em Nova York, onde a rebeldia e a luta contra um sistema arbitrário crescia, nasce o grupo de Hip-Hop Run DMC – o qual não passa despercebido quando o assunto é comunicação através da indumentária. Representando a estética presente nas ruas, composta por agasalhos esportivos, correntes de ouro e bucket caps, um dos itens principais dessa combinação era o tênis branco Adidas. Com uma história não tão calorosa, o tênis branco era utilizado sem cadarços por detentos dentro dos presídios americanos, que proibiam a presença desses complementos, a fim de evitar suicídios ou serem usados como instrumentos de comportamentos violentos. A propagação desse item se tornou tão grande no mainstream após serem utilizados por jogadores de basquete, jovens músicos e artistas, que virou até letra e título de uma música do Run DMC: My Adidas, lançada no álbum
Raising Hell, de 1986, com versos do tipo:
“Pegamos a batida da rua e colocamos na tv
Meu adidas são vistos na tela do cinema
Hollywood sabe que é bom se você sabe o que eu quero dizer
Nós começamos no beco, agora estamos chill em Cali..”
Hoje, a maioria das pessoas tem ou já teve um par de tênis branco, e poderia apostar que muitos já utilizaram esse calçado sem cadarços, sem conhecer a história e movimento de luta de classes por trás dessa aplicação. Aqui, conseguimos ter uma dimensão maior de como a moda pode ter uma mensagem inicial que transmita representação, e ao decorrer de sua passagem, ter seu significado alterado à favor de uma indústria de base capitalista. Nesse ponto, começamos a esbarrar nas vertentes do significado de apropriação e hegemonia cultural.
Esse rapto de narrativas que utilizam a moda como ferramenta de representação na luta contra um sistema autocrático já aconteceu em outros momentos na história da humanidade, podendo citar nesse parágrafo principalmente os movimentos Punk, Hippie e Panteras Negras – que iam contra instituições racistas, segregacionistas e mercadológicas. Na época em que esses
movimentos aconteceram, muitos conservadores perderam o sono, até estes conseguirem entender que a melhor maneira para manter as estruturas funcionando dentro do sistema capitalista, era dar voz e palco para esses grupos dentro da mídia e por de trás das cortinas, continuar os enfraquecendo.
Para conseguir explicar melhor como essa estratégia funciona, preciso citar o conceito de Hegemonia Cultural, segundo o Marxismo(definição que se encontra na enciclopédia Columbia, quinta edição, de 1994, na página 1215): “Na filosofia Marxista, a
hegemonia cultural é o domínio de uma sociedade culturalmente diversa pela classe dominante, que manipula a cultura dessa sociedade, ou seja, as crenças, as explicações, as percepções, os valores, os costumes, de modo que a visão de mundo deles, a visão de mundo imposta dessa classe, se torne uma norma cultural.
A ideologia dominante e universalmente válida, que justifica o status social, político, econômico, como natural e inevitável, perpétuo e benéfico a todos, e não como uma construção social e artificial que beneficia apenas a classe dominante.” E para conseguir entender mais a fundo como essa hiper mercantilização de tudo acontece sem que percebamos, poderia adicionar à definição anterior mais um conceito de Marx, dessa vez sobre a Alienação. Para o filósofo, sociólogo, economista, historiador e
revolucionário socialista Karl Marx, a alienação acontece quando “o indivíduo não se reconhece mais plenamente no produto de seu trabalho e tem acesso a ele apenas mais tarde, ao comprá-lo no mercado” ou seja, “em vez de se apropriar de imediato do produto resultante do ato de trabalho, o trabalhador precisa comprar no mercado aquilo que, muitas vezes, ele mesmo produziu para seu empregador.
A apropriação só acontece por meio da mediação do mercado, que aparece como instância central da economia. O produtor não se reconhece no produto, não se reconhece como produtor, e afirmar-se socialmente como comprador e consumidor.” Essa definição pode ser encontrada no livro Marx – Uma Introdução, doeconomista e escritor Jorge Grespan.
Com isso, conseguimos perceber que a raiz central que fortalece a facilidade da mudança do significado e mensagem que a moda pretende passar, vem da desconexão do próprio indivíduo com aquilo que está presente no mercado. E quando essa conexão acontece, como no caso dos tênis brancos nas cadeias dos Estados Unidos, ou do movimento Punk e Hippie, a classe dominante, que detêm o poder das instituições de mercado, rapidamente se apropria da causa central desses movimentos, enfraquecendo-os e transformando-os em um discurso que vá de encontro com suas próprias ideologias.
Para exemplificar melhor como esse mecanismo funciona na prática, poderia citar a exploração da hashtag #BlacklivesMatter, que começou a surgir com o assassinato de George Floyd em março de 2020, nos Estados Unidos, e hoje está sendo utilizada para estampar canecas e camisetas.
Gostaria de mencionar também outro caso de assassinato de uma jovem mulher negra, modelo e designer de interiores no Rio de Janeiro. Kathlen tinha apenas 24 anos, estava grávida de 14 semanas quando foi atingida com um tiro de fuzil no tórax, na comunidade de Lins de Vasconcelos. Quando a notícia se espalhou nas redes, grupos e imprensa negra começaram a cobrar explicações sobre o caso. A notícia tomou tamanha proporção nacional que a empresa de moda onde Kathlen trabalhava veio à público se pronunciar.
Com uma nota publicada em suas redes, a empresa em questão prestou solidariedade à família da jovem assassinada e aproveitou a ocasião para divulgar um cupom de desconto com o nome de Kathlen para a realização de compras no site, com a mensagem de que “uma porcentagem no valor da compra seria revertida para instituições de caridade.”
O principal ponto desse texto é tentar deixar cada vez mais claro para que você leitor possa entender como a moda em si não possui um DNA ruim, pelo contrário… ela pode e deve ser utilizada como ferramenta essencial na luta contra governos e sistemas racistas, autoritários e detentores de poder. Mas é necessário frisar aqui também, como ela pode ser facilmente sequestrada por instituições e utilizada em prol de seu fortalecimento.
Cabe a nós ficarmos atentos para ver até que ponto a mudança e apoio às causas minoritárias divulgada em campanhas publicitárias realmente acontecem no dia-a-dia dentro das empresas que levantam essas bandeiras. Antes de realizar a compra de qualquer roupa que transmita a mensagem de algo que defendemos e acreditamos, precisamos procurar tentar ao menos saber em que conta bancária o valor daquele produto chegará e quem assina o cheque final.
Ensinar sobre moda e desmistificar esse mercado considerado elitista, deveria ser a pauta mais importante atrelada à essa indústria. Quando compreendemos a força e importância da moda, ela passa a ser nossa melhor aliada.
Caíque Nucci
Jovem atuante no mercado de comunicação, Caíque Nucci começou sua trajetória no mercado de moda como modelo, participando de casting de desfiles para marcas e estilistas como LAB Fantasma e Fernando Conzendey, em eventos como Casa de Criadores e SPFW. E foi no backstage que encontrou sua verdadeira paixão. Formado em Design de Moda pela Escola Panamericana de Arte e Design, Fashion Marketing pela Belas Artes e com especialização em Marketing Digital pela EBAC – Escola Britânica de Artes Criativas, começou a estruturar sua carreira profissional dentro de assessorias de imprensa e agências de comunicação, na parte de produção de moda e jornalismo. Até aqui, carrega em seu portfólio o trabalho prestado para marcas como Converse, Levi’s, New Era, Luxottica, PUMA, Antonio Bernardo e Animale. Fascinado por desenvolvimento de marcas, pesquisa de tendências e comportamento, sempre em busca de inovação, Caíque também integra o grupo de três apresentadores do A Hora Delas Podcast, onde debatem sobre temas como moda, beleza, cultura e sociedade.
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