Por Obalera
“Eu vim saravá terra que piso. Eu vim saravá terra que piso”…“Meu galo macuco boa noite. Meu galo carijó bom dia”… “Nasci n’Angola. Angola que me criou. Eu sou neto de Moçambique, eu sou negro sim sinhô”
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No repicar dos tambores do Jongo de Pinheiral, Jongo da Serrinha, Jongo do Quilombo São José, responsáveis pelos pontos que abrem esta gira de palavras, respectivamente, saúdo-as e por meio delas saúdo todas as comunidades jongueiras e as peço licença para conduzir esse texto-roda.
E lá se vão mais de um ano desde que a pandemia do covid-19 começou. Meses e meses sem “nossas aglomerações” pretas em forma de roda aqui pelo Rio de Janeiro. Aquelas que nos fazem sorrir e aquecem nossos corações.
Que saudade de ouvir, cantar, dançar, celebrar esses e tantos outros pontos de jongo. De sentir o pulsar do meu coração junto ao candongueiro, de tabiá no compasso do caxambu e girar-levitar junto as viradas do tambu. Saudade de me apaixonar por cada saia de chita que gira e com elas suas variedades de cores e flores. De escutar cada verso de jongo e me fazer viajar pelas nossas histórias, memórias contadas muitas vezes por meio de uma linguagem cifrada. Sabedoria trazida por nosso povo de além-mar e transmitida de geração em geração.
E os encontros, os abraços, beijos, sorrisos com as pessoas que se gosta?! Muitas delas só são vistas no dia da roda. Porém, sentidas e vividas com tamanha intensidade. Alegria indescritível, eu diria. E aquele brilho nos olhos ao ver a irmã ou irmão chegando na roda enquanto se está com o “machado” (tá puxando um ponto), aquela/e que a gente não vê um tempão. Dependendo da ocasião, canta logo, por exemplo, um ponto do Quilombo São José: “se eu soubesse que cê vinha eu mandava te esperar. Mandava amarrar canoa no laço verde do mar”. Ou então, se tá na roda respondendo o canto e batendo palma, na primeira oportunidade chama-a para dar aquelas umbigadas dentro da roda.
Saudade de tocar os tambores do jongo e vibrar com o diálogo singular entre o candongueiro, caxambu e tambu. Cada um cumprindo sua missão. Candongueiro batendo como um coração da roda que, como dizem os antigos, vai “buscar quem mora longe”; o caxambu impulsionando nosso balançar, o nosso gingado. E o que falar sobre o grandioso tambu, o mais grave dos tambores, fazedor dos floreios, viradas e improvisos.
Mas, de todos eles, falta sinto mesmo é de tocar e ser tocado pelo candongueiro. É espiritual, lugar de introspecção, conexão ancestral. A cada tocar com as minhas mãos o coro desse tambor, sinto um pulsar melodioso de um grande coração que se faz imensidão por se constituir através da junção de cada pessoa-coração entregue no bater de uma palma, cantar, tocar e dançar.
Roda micro-cosmo da Existência, onde todas as partes – divindades, ancestrais, elementos da natureza, pessoas e animais – se fazem presentes manifestando sua função. Não se trata de religião, mas a expressão de um modo de viver, sentir, pensar que só se faz em interconexão. Não manifestação de uma cosmovisão simplificadora da vida, mas a corporificação de uma “cosmosensação”. Lugar de reconexão com nossas práticas e valores ancestrais. Antiguidade, palavra, espiritualidade, musicalidade, circularidade, ancestralidade, comunidade… tá tudo lá, atravessando a todas/os que se permitem verdadeiramente sentir-vivenciar.
Recordo das histórias de jongueiros que falam do pé de bananeira que é plantado durante uma roda e que cresce e alimenta a todos. Ou então das pessoas que se perdem no caminho de volta para casa por causa de um ponto que não foi desatado, ou mesmo de pessoas que são curadas de uma enfermidade dentro da roda. Histórias contadas e recontadas e tantas outras vividas a cada roda de jongo iniciada. Descrições de sabedorias e conhecimentos ancestrais.
Além dessas memórias, é bom se contar também as histórias de mulheres e homens que deixam de negar seus cabelos, sua pele, suas histórias e as assumem com orgulho e altivez. A cada roda, pessoas vão retomando sua autoestima e dignidade negra sequestrada pela violência do racismo. A roda também é essa magia! A cada cantar um turbante é colocado, a cada tocar um crespo é valorizado, a cada dançar sorrisos de autoamor são escancarados e celebrados. É o poder político de nossas tradições, é a magia jongueira atuando em nossos corações.
Antes de cantar os pontos de despedida, é preciso se dizer sobre a saudade daquelas conversas regadas a cerveja, cachaça e licor fora da roda. Momento de saber das novidades, de fofocar, de xavecar o encanto visto na roda, de fazer novas amizades e de matar ainda mais a saudade dos já amigos/as. E, sobretudo, de gargalhar a vida ao lado de quem se gosta. Afetos experienciados, curtidos, cultivados e conquistados.
“Vou caminhar que o mundo gira. Gira meu mundo” (Jongo da Serrinha).
Assim, vou me despedindo dessa “roda de palavras”, mas não sem antes saudar e pedir a benção de Vovó Maria Joana Rezadeira, Mestre Darcy do Jongo, Tia Maria do Jongo, Tio Mané, Mestre Cabiúna e a todos ancestrais jongueiros. E pedir para que, tão logo estejamos todas/os vacinadas/os, a gente possa fazer nossas rodas de jongo pela cidade e assim, (re)encantar as ruas com a magia das rodas de jongo. Machado!
Obalera é Homem negro de Candomblé. Cientista social pela PUC-RIO e mestrando de Filosofia na UFRRJ. Pesquisador-ativista na área de relações raciais, escritor e poeta. Educador e brincante da Companhia de Aruanda
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