Por Debora Simões
Historiadora
Doutora em Antropologia Social
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Quando você pensa na Independência do Brasil, qual imagem que vem à sua mente? Vou me arriscar a adivinhar: Dom Pedro I às margens do Ipiranga, em São Paulo, em cima de um cavalo, rodeado por uma multidão, e o grito: “Independência ou morte!”. Será que essa forte afirmação era realmente verdade? Será que em 7 de setembro de 1822 o príncipe português estava disposto a morrer pela antiga colônia? Ou foi simplesmente uma frase retórica? A cena, que de algum modo eternizou o dia 7 e está presente na maioria dos livros didáticos de História, foi pintada pelo artista Pedro Américo.
Isso significa que o Brasil se tornou uma nação por meio do príncipe que resolveu libertar a principal colônia de Portugal, por um ato de bondade ou mesmo de articulação política. O monarca heroico conseguiu manter a unificação territorial de um país com dimensões continentais. Mas tudo de forma pacífica e centrada no imperador. Espero que você, leitor, tenha entendido a ironia presente nas frases anteriores.
Dessa vez sem ironia: a emancipação diplomática ficou restrita ao eixo Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Ela foi protagonizada por uma elite branca. Vamos voltar para as representações sobre esse processo histórico. Outra obra mostra, ou tenta mostrar, um retrato da nação recém liberta. O famoso artista francês Jean-Baptiste Debret pintou um grande painel exposto no Teatro da Corte, produzido especificamente para a cerimônia de coroação do novo líder da recente nação dos trópicos.
Lília Schwarcz e Heloísa Starling, no livro Brasil: uma biografia,fazem uma análise interessante da pintura, descrevendo um detalhe que chama atenção: “numa das laterais o artista pretende mostrar a fidelidade de uma família negra ao império nascente: um menino portando um instrumento agrícola acompanha sua mãe, a qual com a mão direita, segura o machado destinado a derrubar as árvores das florestas virgens; na mão esquerda, a mulher apoia no ombro um fuzil do marido arregimentado e pronto para partir. Assim, longe de questionar a escravidão, a africana comparece apenas para defender, com seu corpo, a monarquia”.
O que os livros em geral não contam e nem está nas paredes dos museus é que ocorreram inúmeras lutas de independência no Nordeste, sendo a principal delas na Bahia, na qual negros, indígenas e brancos lutaram até 2 de julho de 1823 pela independência. Que mulheres como a negra Maria Felipa foram personagens importantes na luta contra os portugueses e seus apoiadores. Que as imagens dos negros obedientes e dispostos a assegurar a monarquia é no mínimo mentirosa.
Anos antes da independência, em 1798, em Salvador, aconteceu um movimento que lutava pela emancipação política e o fim do sistema escravista, defendia ideias republicanos e foi organizado por negros. Foi a Conjuração (Inconfidência) Baiana, Revolta dos Búzios, Revolta dos Alfaiates ou Revolta dos Argolinhas. Heróis dos Búzios como Lucas Dantas, Luís Gonzaga das Virgens, Manoel Faustino dos Santos e João de Deus do Nascimento foram condenados pela Coroa Portuguesa, enforcados e esquartejados, e seus corpos foram expostos na Praça da Piedade, em Salvador.
Lutavam inspirados nos ideais da Revolução Francesa e da Revolta do Haiti. Esta última ocorreu na Ilha de São Domingos, principal colônia da França, na qual negros lutaram e conquistaram a emancipação. Nas colônias das Américas, as elites políticas e econômicas ficaram ainda mais temerosas após o sucesso da criação de uma nação negra independente O chamado “medo negro” tomou conta dessa elite preocupada com o exemplo, principalmente nas colônias com elevado número de negros, como ocorria no Brasil. As rebeliões escravas no Brasil são tão antigas quanto a própria escravidão moderna. Só para a gente ter uma ideia da expressividade numérica de negros no nosso país, em 1808 31,1% das pessoas no Brasil eram escravizadas. Em Salvador estima-se que, em 1807, negros (escravizados e libertos) eram 80% da população – informações presentes na obra Brasil: uma biografia.
Mas eles não foram considerados na construção da história do país recém-nascido. A população negra só servia para fazer a roda da economia girar. As rebeliões negras foram duramente massacradas pelas forças imperiais. A concepção de cidadão excluía os homens e mulheres negros. A nação não resolveu sua maior questão: a escravização.
No próximo dia 7 de setembro o chefe do executivo fará um desfile. Eu não gostaria de ser convidada, e não seria mesmo, pois sou mulher e negra. Mas assim que a pandemia passar estou convidada para outra comemoração de independência, com o caboclo e a cabocla desfilando pelas ruas da capital baiana, onde desde 2 julho de 1824 a população (em sua diversidade) celebra a coragem, a bravura, a resistência do povo.
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