Este texto é uma travessia, um caminhar através de reflexões, perguntas, compartilhamentos de pensamentos e ressignificação das relações.
Em rodas de conversas com diferentes amigos tenho observado que as mesmas questões, as mesmas dores atravessam as pessoas: a solitude que se transforma em solidão e a busca constante por afeto. Não falo exclusivamente de relações afetivas, falo de todos os tipos de relações.
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Estamos caminhando para três anos de isolamento social, muitas pessoas continuam trabalhando no formato de home office e toda troca se dá apenas através de uma tela. Não tem abraço, toque, muitos não conhecem como é a risada da outra pessoa, a sua altura e nem o cheiro. Perdemos a humanização do outro. Ainda não mensuramos o tamanho do impacto social e comportamental que a pandemia nos afetou, mas sentimos que não somos mais o mesmo quando saímos de casa e encontramos as pessoas. Parece que existe um certo deslocamento, uma sensação de não sei se abraço ou se fico com as mãos no bolso pra evitar que ultrapasse o limite do toque, os sons que se misturam entre conversas, música e trânsito.
Você já percebeu como tivemos muitas mudanças internas e nossas relações com as pessoas também estão afetadas?
Além do impacto emocional-social causado pela pandemia, vivemos em tempos desafiadores para relacionar-se, onde as relações se tornaram rasas e líquidas. É muito mais fácil – e rápido – “trocar as pessoas” do que “trocar uma ideia”, afinal, pra conversar, precisa de tempo, disposição e, algumas vezes, paciência. Pois, o que forma as pessoas são seus ideais, suas histórias e experiências, suas visão de mundo diferente e por isso se chama troca. Entre os meus (e comigo), percebo um cansaço e uma frustração de se abrir para estes momentos e simplesmente não acontecer porque a outra pessoa não está disposta, não está na condição de se abrir, de mostrar suas vulnerabilidades, de se doar para conhecer a si e ao outro. Percebo que para muitas pessoas o período de isolamento, principalmente no início, foi um momento de mergulho interior, de autodescoberta e por isso, aconteceram mudanças significativas em busca de uma melhor versão de si mesmo. Alguns casais se formaram, outros terminaram. Muitos sentimentos sendo ressignificados, curados e finalizados. Abrindo assim o caminho para o “deixar ir” e “deixar vir”.
E, se você chegou até aqui, tenho que te dizer que o desenrolar dessas linhas será sobre o que mais tem me atravessado nos últimos tempos ressignificar as relações a partir de novas perspectivas sobre o amor e o afeto.
Tudo parte de duas leituras que me fizeram renascer, senti meu mundo se abrir para outras visões e passei a interpretar tudo de uma outra forma. Percebi que as minhas relações foram construídas não sob o ponto de vista de África e sim do ocidente. E isso faz toda diferença. Vamos conversar sobre Sobonfu Somé e bell hooks?
Tudo começou com “Um defeito de Cor, que é turbilhão de emoções. A partir dele, comecei a me debruçar em livros de filosofia africana e cheguei em ”O Espírito da Intimidade” de Sobonfu Somé mais de uma vez. Me atravessou tanto que tive que resgatar e ler de novo. Pra começar, Sobonfu descreve a intimidade como “uma canção do espírito, que convida duas pessoas a compartilharem seu espírito. É uma canção que ninguém consegue resistir… Quer admitimos ou não, existe uma dimensão espiritual em todos os relacionamentos independentemente de sua origem”. Em que momento buscamos, pensamos ou temos conosco isso em nossas relações? Esquecemos (ou muitas vezes nem aprendemos) os costumes e a filosofia africana, de nossos ancestrais. Entramos no automático, deixamos de valorizar as pessoas que passam a fazer parte de nossa travessia porque simplesmente não paramos pra pensar que essas pessoas não apareceram por acaso, que os encontros acontecem em conexão com o espírito. É algo muito maior, mas estamos preocupados e apressados demais, deixamos de vivenciar os momentos e nem sabemos o sentido dessa pressa toda.
A intimidade está num lugar que é acompanhado de outros ingredientes raros – vulnerabilidade, confiança, entrega e o principal, deixar de ter qualquer expectativa ou projeção sobre perfeição, seja sobre si próprio ou sobre o outro. Para acessar esse lugar, você precisa abrir mão daqueles estereótipos formados em sua cabeça e enxergar quem está ali na sua frente, verdadeiramente. Você está pronto pra isso? Pra deixar de lado as princesas e príncipes da Disney? O processo de aceitação começa por você, por aceitar seu corpo, suas marcas, suas experiências, acolher suas dores, seus tramas e suas sombras, assim como encontrar e admirar suas riquezas, sua fortaleza. Quando conseguir se olhar na intimidade sem se julgar, vai conseguir olhar pra outra pessoa com todo carinho e afeto que ela também merece.
Já com bell hooks, em “tudo sobre o amor – novas perspectivas”, somos provocados a refletir sobre qual é o significado do amor. Toda vida o amor foi visto por mim como um sentimento, não sei se eu posso dizer (assim como muitas pessoas pretas) que me senti sempre amada. Posso ter me sentido cuidada, mas amada não necessariamente. bell traz reflexões sobre a origem do amor mesmo a partir das relações com nossas famílias, ou como a sociedade fala e deseja o amor mas não sabe defini-lo. Gosto quando ela aponta que o amor como uma ação, a partir do trabalho de Erich Fromm que define amor como “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou de outra pessoa […] O amor é o que o amor faz. Amar é um ato de vontade […] A vontade também implica escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”. E aqui também aprendi alguns ingredientes raros para essa construção: afeição, carinho, reconhecimento, respeito, confiança, honestidade e comunicação aberta.
Os ensinamentos africanos são muitos e nos atravessam, se permitirmos e nos abrirmos.
Mas alerto para momentos de reflexão, de revisão da vida e da forma como somos e nos colocamos no mundo. Pois, depois de acessar esses ensinamentos, mudanças podem acontecer no seu interior e quando você buscar trocas, pode sentir um vazio porque as pessoas tem medo de usar esses ingredientes todos e assim chega a frustração, o cansaço de tentar se relacionar com base na troca de afeto, de cuidado, de carinho e conexão.
Tenho acreditado cada vez mais que o amor cura. E que o amor preto é revolucionário, um ato político.
Mas também enxergo as relações como uma responsabilidade que demanda tempo, dedicação, paciência e disposição, com altas doses de coragem.
Mas se você se sentir atravessado por esses ingredientes e estar disposto, tente acreditar que vai acontecer essa troca, confia no cochicho que chega nos seus ouvidos, são seus ancestrais te preparando para o que vai chegar, se renda às transformações.
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