Uma certa vez escrevi um artigo no Mundo Negro sobre a “busca pelo afeto em tempos de relações rasas”. Era um momento de muitas conversas com amigos e conhecidos, de diferentes gêneros e universos sociais distintos – entre o trabalho, o almoço e a mesa do bar – todos tinham o mesmo repertório da resenha: como está difícil se relacionar depois da pandemia. E assim, resolvi escrever um texto para conversar com mais pessoas, porque para mim, as palavras escritas são pontes de longas conversas, daquelas que a gente faz um café e deixa seguir pela tarde toda.
Eu estava estudando profundamente a forma das relações e como nós, pessoas negras, nos relacionamos com o amor sentido e recebido. E uma das análises mais dolorosas foi constatar que muitos de nós desconhecia o sentimento de amor. Quando li “O Espírito da Intimidade”, escrito por Sobonfu Somé, fui atravessada de maneira tão profunda que foi preciso rever a forma como tinha encarado e vivenciado as minhas relações até então.
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Saí de Sobonfu e fui para bell hooks me debruçar em “tudo sobre o amor”. De fato, não deu bom! A terapia virou um SOS e eu tinha uma outra compreensão sobre o amor, muito equivocada. Acho que a maioria das pessoas que leem esses dois livros chegam nessa conclusão. Resolvi pausar, (como descobri em relatos de outras pessoas) e repreender o que eu entendia como amor e a maneira como enxergava as relações e como me relacionava. Decidi que não me relacionaria até o momento que me sentisse pronta. Entrei naquelas de “se preparar para o amor que vai chegar” (um dia, sabe-se lá quando). Nessa altura eu já tinha muitas conversas com Oxum, detalhando o que eu esperava, o que estava dentro dos meus limites e o que estava disposta a encarar (sim, quase uma luta interna). E sim, fugia completamente do amor romântico que a Disney me ensinou, junto da descoberta que eu não poderia ser princesa porque não tinham princesas negras, eu tinha uma certa dificuldade mesmo de encaixe nessas narrativas. Longe de qualquer perfeição. Foram longas conversas com Oxum sobre o desejo de amar e ser amada. Como filha de Oyá, a ventania estava aqui, mas é sobre o tempo das coisas. E o tempo, tem seu tempo também.
E não é que comecei a vivenciar a colagem de alguns corações partidos à minha volta?! Inclusive o meu! Sofri o que pode ser chamado de arrebatamento luminoso, muito bem traduzido por Sobonfu Somé como “uma canção do espírito que convida duas pessoas a compartilharem seu espírito… uma canção que ninguém pode resistir. Simplesmente não conseguimos ignorá-la”. Gosto de apelidar esse momento carinhosamente como um acontecimento bonito. E é desesperador. Que sentimento mais conflitante rezar para encontrar um amor e quando ele chega desperta tanto medo a ponto de ser assustador. Eu me preparei, eu queria conhecer o amor, mas o medo de confiar e me entregar parecia muito maior. E sabe qual é o nome disso? Vulnerabilidade.
Para se entregar, você precisa ter coragem. Coragem vem do latim coraticum, e tem como um dos significados a palavra coração. Que coisa, não? bell hooks cita que fomos ensinados a pensar no amor como um sentimento e não como uma ação, confundimos a catexia com o amor: “quando nos sentimos profundamente atraídos por alguém, dedicamos energia mental e emocional à pessoa, isto é, investimos de sentimentos e emoções, esse processo de investimento em que a pessoa amada se torna importante para nós é chamado de catexia”. Procuramos uma garantia no amor, a certeza da permanência. Não queremos correr riscos, não queremos mostrar fragilidade. Como vou me expor de tal maneira, sem uma dose sequer de mistério? E onde entra a admiração? Buscamos por um lugar de conforto, de maneira que esse sentimento (ilusório) nos faça sentir mais seguros em permanecer, tirando de nós a responsabilidade da escolha em ficar. Mas o amor é responsabilidade, é comprometimento, é cuidado, é respeito. E quem diz que não dá trabalho, está mentindo!
Podemos concordar que AMAR É UM ATO DE CORAGEM?
Que realmente é preciso uma grande dose de coragem para entregar o seu coração a um outro alguém? Permitir ser conhecido de verdade, em sua total completude e imperfeição. Difícil, né? Mas, tenho sentido algo que te compartilho em segredo, a admiração se torna grandiosa vista por essa lente, ao perceber que a outra pessoa está tão disposta quanto você em ser de verdade, em estar vulnerável e de te conhecer profundamente, permitindo que também a conheça. Um dos ensinamentos de Sobonfu Somé nos diz que “em um relacionamento existe uma tendência natural de os espíritos de ambas as pessoas se unirem. Quando dois espíritos conseguem, de fato, comungar profundamente, sem interferência da mente, as pessoas formam uma ligação muito forte, sincera e amorosa”. É menos sobre ego e mais sobre entrega.
Sou a rainha dos rituais, os considero uma das nossas tecnologias ancestrais mais poderosas. Eles ajudam a me manter no prumo do discernimento quando vem um descompasso. E um deles é, lembrando que tenho uma relação profunda com a escrita e que acredito realmente que tem coisas que só saem da gente por escrito (créditos ao avô de Cris Lisbôa que a ensinou essa sabedoria e ela compartilha em suas aulas de escrita), revisito meus caderninhos e leio as razões que me levaram a escolher viver o amor e os porquês dessa escolha ousada e corajosa. Isso me faz recordar do quanto eu ansiava (e anseio) a cura. A cura do medo de amar e ser amada. A cura ancestral da partida daqueles que amamos. A cura da exigência em ser 300% em perfeição como condição para ser admirada e amada.
O amor é o que o amor faz.
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