Dismorfia financeira e a população negra: a sensação de não pertencimento perpassando as transações monetárias

As emoções desempenham um papel crucial em nossas escolhas financeiras. Ao considerar o recorte de raça, destacam-se diferenças significativas na experiência da população negra com relação ao dinheiro. Fatores históricos e estruturais contribuem para um cenário específico, influenciando a forma como os indivíduos negros lidam com suas finanças.

A dismorfia financeira refere-se a uma condição na qual as pessoas têm uma visão distorcida de sua situação financeira. Assim como a dismorfia corporal, onde as pessoas veem imperfeições inexistentes em sua aparência física, a dismorfia financeira leva os indivíduos a perceberem a saúde financeira de maneira desproporcional, muitas vezes gerando ansiedade e comportamentos prejudiciais. A relação do povo negro com o dinheiro vai além de números e transações, ela é impactada pelo racismo vivido cotidianamente e todo o histórico de desigualdades.

A relação distorcida com o dinheiro tem raízes históricas, desde os tempos da escravidão até os dias atuais. Durante séculos, as comunidades negras enfrentaram a negação de oportunidades econômicas, resultando em um déficit de recursos acumulado ao longo do tempo.

A comparação social desproporcional é uma característica frequente da dismorfia financeira sentida pela pessoa negra. A tendência a se comparar e traçar objetivos financeiros para se igualar ou superar os demais é um sentimento comum e uma nova escravidão, onde o indivíduo se sente preso à ideia de que precisa manter uma imagem percebida de sucesso para prosperar ou ser respeitado. E sempre fica a sensação de que sempre falta algo. Vazio.

Outra situação que reflete a dismorfia financeira na população negra se revela também no comportamento inverso ao da ostentação. O indivíduo mesmo tendo uma renda estável, vive com medo constante de gastar dinheiro, ainda que somente com suas necessidades básicas. Ele evita investir em si mesmo ou em experiências enriquecedoras, temendo que cada centavo gasto seja um passo em direção à ruína financeira e retorno à pobreza em que viviam seus antepassados. E o descaso com essa situação causa impacto negativo na sociedade, inclusive, afetando a economia, uma vez que somos maioria em quantidade, um país que negligencia mais da metade da sua população tende a não prosperar.

Outro comportamento prejudicial gerado pela dismorfia financeira também está em evitar olhar o extrato bancário ou discutir finanças com a família, ou seja, desconsiderar a realidade financeira, o que pode levar a decisões inadequadas e falta de planejamento, ao comportamento de gastar por impulso e posterior endividamento.

O problema da dismorfia financeira afeta a maioria da população negra, e também a parcela que decide empreender. Muitos acham que ter o próprio negócio é a única alternativa diante da dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, por exemplo. Mas achar que precisa empreender para sobreviver e não para viver um propósito, é outro reflexo dessa dismorfia.

O debate em torno do tema terá espaço no Afro Fashion Day, evento marcado para o dia 25 em Salvador, durante uma ativação do Will Bank. A instituição realizou a primeira pesquisa sobre Dismorfia Financeira no Brasil. O estudo oferece uma visão da relação emocional da população com o dinheiro, com especial atenção ao recorte racial. Um dos dados da pesquisa indica que 71% das pessoas acreditam que precisam se esforçar mais para conquistar o que os outros ganham facilmente.

Lidar com as finanças desperta sensações. A escassez se materializa na falta, não só de dinheiro, mas de pertencimento. Existem barreiras invisíveis que julgam quem é adequado a cada espaço. A partir dessa ótica, podemos pensar na educação financeira como uma estratégia que deveria começar pelo autoconhecimento e todo processo de compreensão das emoções que o indivíduo associa ao dinheiro.

A dinâmica entre emoções e finanças é um terreno complexo e muitas vezes negligenciado. A dismorfia financeira, esse fenômeno só recentemente estudado, destaca como nossas percepções distorcidas podem influenciar nossas decisões de maneiras sutis e, por vezes, nos prejudicando e acentuando desigualdades. Quando se nasce negro no Brasil, superar as dificuldades financeiras e prosperar também vai depender de um olhar mais profundo para dentro de si.

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*Priscilla Arantes é gerente de comunicação do Sistema B Brasil, e articuladora do Coletivo Pretas B, um projeto que apoia mulheres negras na rede do Sistema B Brasil por meio de mapeamento, mentoria, consultoria e capacitação, e fundadora do Instituto Afroella.

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