Por Shenia Karlsson
Em setembro de 1994 uma família americana – como milhares de famílias pelo mundo afora, perdeu seu filho para o suicídio. Assim nasceu o Setembro Amarelo, um movimento de conscientização sobre o sofrimento psíquico e suas drásticas consequências. O suicídio sempre foi um tabu, na verdade o sofrimento é um tabu, não fomos socializados para partilhar nossas dores, a dor sempre foi vista como algo que temos de evitar. Essa realidade agrava-se com o machismo e o racismo a partir das narrativas construídas acerca do que é ser homem e, sobretudo, o que é ser homem negro. Quem não se recorda da afirmação de Fanon “o negro não é um homem, é um negro” e desta forma serão vistos.
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Sabemos que dor é de quem a sente, não deve ser ignorada e muito menos comparada, enquanto psicóloga tenho a responsabilidade de assegurar que todas sejam acolhidas com o respeito merecido. Entretanto, existem dores que socialmente são desconsideradas, corpos vistos como um repositório comum das dores, especialmente corpos negros historicamente animalizados. É bem verdade que corpos negros não geram comoção, a exemplo disso o Setembro Amarelo, movimento iniciado a partir da morte de um jovem branco. Há um genocídio negro em curso promovido por uma necropolítica, uma guerra declarada contra nossos corpos, mas é preciso ressaltar que o racismo mata de morte matada mas também de inanição afetiva. A pergunta é, como não desistir da própria existência num contexto produtor de todos os tipos de morte negra? E para os que ainda têm dúvidas, vamos aos índices.
Índices do adoecimento de jovens negros
O Ministério da Saúde através da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra divulgou em 2018 índices expressivos e demonstrou o aumento exponencial de suicídio entre jovens e adolescentes negros. As causas seriam “o racismo estrutural, as desigualdades étnico raciais e o racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde”. O suicídio é um fenômeno de alta complexidade, implica em diversos fatores e pode reunir componentes tais como depressão, consumo de drogas e álcool, castigos físicos, violência doméstica e familiar, violência psicológica, assédio, racismo, homofobia, negligência, abandono, bullying, ciberbullying, abuso sexual infantil, desemprego, ausência de projeto de futuro dentre tantos outros fatores. E ainda em 2019, o Ministério da Saúde divulgou em suas pesquisas uma alarmante informação, entre os jovens, são os pretos que possuem 45% mais chance de apresentar transtorno depressivo e sabemos que esta é uma porta perigosa. Tais dados indicam uma realidade cruel, adoecemos desde a tenra idade sem que as políticas públicas de saúde implementem ações significativas para a mudança desse cenário e, a depender do governo vigente, a situação só têm piorado.
A dimensão psicológica do racismo
O racismo é composto por algumas dimensões, no entanto, a dimensão psicológica é a mais poderosa visto que dá sustento a todas as outras. O racismo não sobreviveria sem o sequestramento de mentes, sem o assaltamento do ser. Em sociedades estruturalmente racistas, nossos processos de construção de subjetividade são tão distorcidos que o adoecimento psíquico torna-se quase inevitável e Neusa Santos já nos apontava para essa consequência em sua obra Tornar-se Negro.
Diversos fatores tornam negros mais vulneráveis e suscetíveis ao adoecimento psicológico, a exemplo disso o trauma racial vivido individualmente e/ou coletivamente, as contingências de uma vida precarizada em muitos níveis e a falta de acesso à saúde, especialmente aos serviços de cuidado e atenção primária. A desigualdade nos afeta em níveis profundos a ponto de distorcer nossa visão de mundo sobre nós mesmos, o resultado é uma perspectiva negativa sobre os negros. O auto ódio, a ausência de senso de pertencimento, a desesperança, a falta de projeto de futuro e a exclusão faz da vida do jovem negro muitas vezes uma experiência insuportável.
Socialmente, desde muito cedo, observamos que jovens negros aprendem a ocupar as periferias das experiências como se fossem lugares comuns devido ao conjunto de estigmas colado como uma roupa justa, com isso, suas potências são apagadas, a inexistência e a invisibilidade passa a ser a única forma de estar. A cor da pele enquanto signo carrega uma memória histórica-social com muitas representações: corpo negado, corpo perigo, corpo a ser destruído. Essas são as mentiras eficientes sobre nós e de tanto serem ditas, acreditamos.
O Desistir Negro
O suicídio de negros não é um fenômeno novo, inclusive, foi objeto de análise de pesquisadores da UNICAMP. O estudo tinha por objetivo entender as motivações dos atos suicidas por parte dos escravos entre os anos de 1870 a 1888. Já na época, “os homens negros predominaram as estatísticas e as formas mais comuns eram o enforcamento, afogamento e uso de arma branca”. Todos nós já ouvimos histórias de atos desesperados de nossos ancestrais, a violência do período colonial deixou marcas transgeracionais. Hoje as formas de sofrimento sofisticaram-se, mas a dor continua a ser a mesma.
As principais causas que levam jovens e adolescentes negros a cometerem suicídios, de acordo com o Ministério da Saúde através da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra são “o não lugar, a ausência de sentimento de pertença, sentimento de inferioridade, rejeição, negligência, maus tratos, abuso, violência, inadequação, inadaptação, sentimento de incapacidade, solidão, isolamento social, não aceitação da identidade racial, sexual, de gênero e classe social.
Para os psicanalistas, a base dos eventos psíquicos é o conflito, posto isto, o sujeito pode se ver numa encruzilhada. Passa a ter uma percepção de mundo difusa e negativa ao ponto de cogitar não estar, e o objetivo é aplacar a dor que é característica nesses casos. As ideias suicidas passam a ser construídas até o momento da passagem ao ato. É fundamental levar muito a sério a verbalização do desejo de não estar, é um momento em que a dor está bem elevada, é um sinal vermelho.
Produção de vida em meio a Necropolítica
O racismo produz marcas profundas, muitas vezes irreversíveis. O combate ao suicídio de jovens negros é uma pauta tão importante quanto a luta contra o genocídio de jovens negros e devemos nos atentar para isso. É uma questão de saúde pública, urgente e cara para a comunidade negra. Somente uma mobilização social organizada pode reverter esse cenário, sendo assim, não só remédios institucionais devem ser pensados e aplicados, mas a conscientização social para tal problema. Cada um de nós temos a responsabilidade de agir, pequenas ações, incentivos, uma escuta atenta e sincera, um conselho, um abraço, um afago pois o melhor caminho é o afeto.
É comum no relato dos jovens, quando esses revelam que não são ouvidos, a falta de acolhimento, de um lugar seguro para falar suas angústias, de seus sonhos, de seus desejos. O sujeito é aquele que deseja, o desejante existe para si e para o mundo. Jovens precisam aprender a projetar-se no futuro e temos de oferecer condições para isso. Combater a ausência na escola, incentivar a educação, o esporte, as artes em geral podem revelar potências inimagináveis. Produzir possibilidade é produzir vida. A comunidade negra é resiliente, potente e não podemos nos permitir morrer de inanição afetiva. Sejamos um aporte, um norte, nós por nós.
Fontes:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/obitos_suicidio_adolescentes_negros_2012_2016.pdf
https://www.ufmg.br/saudemental/saude-mental/suicidio/
https://www.sbpsp.org.br/blog/suicidio-e-psicanalise/
https://exame.com/bussola/jovens-negros-tem-45-mais-riscos-de-desenvolver-depressao/
https://www.medicalnewstoday.com/articles/black-depression#causes
https://agencia.fiocruz.br/suic%C3%ADdio-de-escravos-%C3%A9-tema-de-artigo-de-hist%C3%B3ria-ci%C3%AAncias-sa%C3%BAde-%C3%82%E2%80%93-manguinhos
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