Paulistana, Glaucia Verena, 33 anos nasceu e cresceu no bairro de Santana, estudou em escola pública durante toda a vida. Sempre vivenciou o enfrentamento dos choques de realidade sociais, entre os muito pobres e a classe média. Aluna muito aplicada, ouvia de seus pais que precisava ser melhor que todo mundo, por ser mulher e preta. E nessa lógica real foi criada, buscando sempre ser exemplar na sua vida acadêmica.
Ciente da individualidade do ser humano, em sua visão, educar está relacionado a formar pessoas, e não máquinas de produtividade. Sempre considerou a meritocracia como um estabelecimento opressor, que não preza pelo desenvolvimento pleno dos seres humanos. Uma vez que se é preto, e se é colocado dentro desse predeterminismo, o jogo se torna diferente, e se faz necessário dar muito mais braçadas, pra se chegar aonde se deseja estar.
Sua mãe, Dona Antônia, uma paraense de muita fibra, veio ainda pequena para São Paulo, e com muita luta cursou 2 faculdades. Assistente social por profissão, sempre trouxe muito forte a sua luta ao longo da vida, afinal, sair do Xingú e vir para São Paulo é um grande passo. Enfrentou preconceitos por ser nortista, mas mesclando autenticidade, posicionamento, força e carinho, formou seus filhos.
Seu pai, Sr. Luiz, engenheiro civil de formação, foi o único negro em sua turma na faculdade. Também teve diversos enfrentamentos, numa época em que o pertencimento não era tão bem trabalhado na academia, nem na família. Com muita tenacidade em continuar os estudos, se formou e sempre trouxe a educação como ferramenta de mobilidade social. Sempre acreditou que ninguém poderia tirar a educação e o conhecimento, uma vez adquiridos. E juntos, seus pais sempre trouxeram a educação como um grande valor em casa.
Gláucia sempre foi uma criança muito bem estimulada através de esporte, música e estudos. E a música sempre foi uma grande professora de disciplina pra ela. Habilidades sociais, cooperação, estar junto, colaboração, esses são alguns dos aprendizados que a música o trouxe, para atender, entender suas emoções, e ajudar a expressá-las de maneira libertadora.
“Música e esporte não podem faltar no processo educacional de uma criança. A gente precisa, não só no sentido mais direto, mover o corpo e sentir a música. Você aprende e vai se moldando como pessoa. Principalmente na educação infantil.”
De berço, sempre com muita riqueza musical em casa, ouvia Leci Brandão, Martinho da Vila, Tina Turner, Steve Wonder, Michael Jackson. Começou a aprender piano aos 7 anos, e tomou gosto pela música clássica. Aos 9 começou sua educação musical formal, canto lírico e instrumentos, na universidade Tom Jobim.
Foi conhecer a fonoaudiologia dentro do teatro municipal. Como curiosa e cientista, sempre teve o desejo pelo estudo. Essa proximidade veio por meio da música, e inspirou sua jornada acadêmica, que foi um grande caminho. Em sua quarta tentativa, passou no vestibular, e iniciou seus estudos em Fonoaudiologia, que posteriormente foram seguidos de especialização, mestrado e atualmente cursando doutorado, todos na Faculdade de Medicina Universidade de são Paulo.
Durante a graduação, seu maior choque foi o de não identificação com uma turma majoritariamente branca. Não abaixou a cabeça e seguiu lutando, ocupando os cargos de presidente do centro acadêmico, de ligas acadêmicas, além de projetos de iniciação científica, que foram uma ótima base para se entender de outra forma, como cientista.
“Se ver e suportar uma graduação tão intensa, integral. Tive que me arranjar na minha subsistência. Fiz um pé de meia, que me garantiu 2 anos do ensino do ciclo básico, na graduação. Até que no 2º ano comecei meu projeto de iniciação científica, e passei a ter uma bolsa mínima que me ajudou muito na minha formação científica e de permanência.”
Recebeu um chamado ancestral, e fundou o Núcleo Ayé, o primeiro coletivo negro da Faculdade de Medicina da USP, compartilhado com sua amiga Ingrid Merlin, e a partir dessa união foram procurando os pretos dentro da faculdade de medicina, e formando esse coletivo, que contribui e assiste os alunos pretos com foco em acolhimento, fortalecimento e permanência da negritude acadêmica, uma vez que a permanência estudantil ainda é um percalço para muitos. O núcleo também atua no letramento racial e na promoção da saúde mental. Trata-se de um local de segurança e representatividade.
Hoje, Glaucia fundou e está à frente da LabVoz, um espaço que oferece assistência, desenvolvimento do potencial de expressão e comunicação, por meio de ciência, fonoaudiologia e criatividade, unindo arte e ciência pra transformação e expressão das pessoas, e atende a grandes artistas, como as cantoras Xênia França, Liniker e Marissol Mwaba.
“Na LabVoz trabalhamos com voz artística e clínica, além de comunicação corporativa, e desenvolvimento de storytelling. Acreditamos numa prática baseada em evidências. Atender grandes vozes, com as quais tenho possibilidade de ter acesso, é um encontro de verdades! Trabalhamos juntos de forma genuína, técnica, artesanal. Nos posicionamos e encontramos pessoas maravilhosas no caminho.”
Para Glaucia, ao longo da vida vamos criando estratégias de sobrevivência e defesa, é essencial aprendermos a nos encontrar na cura, principalmente as pessoas negras. Letramento racial, referência de pessoas que são potencias pretas. Nossa cultura, que faz parte do nosso sistema imunológico, precisa ser preservada. Conhecer a crença, o povo, e o motivo de estarmos juntos, nos fortalece.
O racismo é um fato. Um fenômeno sistêmico. Não é opinião e sim uma estrutura. E conforme a gente vai ascendendo na carreira, o racismo vai se tornando mais sofisticado. Pra isso, precisamos estar bem, com saúde, cabeça, nutridas. Do contrário vamos continuar virando estatística.
O silenciamento é lido como introversão, mas na verdade é violência. A falta do ato de fazer sua voz ser valorizada em contexto sociais.
Durante a pandemia, Glaucia também criou o Festival Levante, um projeto da LabVoz que tem o objetivo de construir receita pra artistas independentes pretos, e já está em sua segunda edição.
“Preciso honrar meus ancestrais, aqueles que vieram antes de mim e morreram pra que hoje eu tivesse voz. E hoje, trabalho para que sua voz não seja invisível que e se faça sempre presente. Somos poeira estelar, e nosso papel é brilhar.”