Blackface (em tradução livre “rosto preto” ou “cara negra”) é um termo que, em teoria corresponde a pintar o rosto com tinta para se aproximar da cor de pele de uma pessoa negra. Na prática, porém, é uma ferramenta de ridicularização e apagamento de pessoas negras há séculos. Blackface vai além de jogar tinta preta no rosto, envolve também pintar os lábios com contorno vermelho para parecerem maiores. Essa prática foi popularizada por atores brancos no século XIX que também faziam uso de sotaques e estereótipos atribuídos aos negros norte-americanos. Já no século XX, blackface passou a ser utilizado no teatro, agora sem os lábios exagerados para atores brancos interpretarem personagens negros, já que atores negros eram “raros” na época.
Como exemplo é possível citar Nascimento de uma Nação (1915) onde atores brancos, pintados como negros, eram retratados dessa forma desumanizada e colocados enquanto vilões, ao passo que a Ku Klux Klan fora retratada de forma positiva. Nascimento de uma Nação, inclusive, é considerado um clássico do cinema por estabelecer diversas linguagens importantes para o cinema, então Hollywood e a história do cinema mundial possuem essa mancha racista.
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FOTO 3X4: Rudson Martins – Produtor de Elenco
Este não foi e não é a única forma de estereótipo racista da história do cinema, temos alguns outros como “mandingo” que se encontra no espectro da hipersexualização de homens negros e desumanização de seus corpos, além dos papéis que atribuem subserviência, agressividade, vadiagem e criminalidade como características inatas de pessoas negras.
Na discussão desses estereótipos é importante ter em mente que o problema é a repetição desses personagens. Isso porque, além de limitar as possibilidades de atuação de pessoas negras, contribui na atribuição de caracterização de raiva, agressividade e subserviência como aspectos negros, além da claríssima hipersexualização repetitiva. Então, para muitas pessoas, blackface pode parecer algo simples e inocente, mas a história que ele carrega não é tão inocente assim.
Infelizmente muitas das obras que fazem parte da história do cinema acabam trazendo consigo os problemas racistas de sua época. Esses problemas ecoam até os dias de hoje e, na tentativa de resolver esse problema, quando um serviço de streaming coloca em seu catálogo um desses clássicos, muitas questões éticas e morais são levantadas: É preciso remover alguma cena? Colocar um aviso antes da exibição? Retirar da plataforma de uma vez?
É necessário notar que, dada a discussão, fica evidente a falta de preparo dos estúdios e corporações com o tema (ou seria a falta de interesse?). Os filmes sempre estiveram ali com esse conteúdo e qualquer um que estude um pouco sobre história do cinema descobre que as primeiras produções eram escancaradamente racistas. Essa discussão sempre existiu, com o passar do tempo fica cada vez mais incoerente e difícil aceitar que os estúdios aleguem inocência em suas justificativas.
Desde os anos 60, quando aconteceram nos Estados Unidos os movimentos por Direitos Civis negros, todas as obras anteriores já haviam sido pauta dentro da comunidade. Portanto, quando apontado que E o Vento Levou (1939) carrega conteúdo racista, é importante lembrar que essa não é uma discussão nova, ela já existe há muito tempo. Mas Hollywood sempre foi liderada por pessoas brancas com histórico de silenciamento de vozes negras, elas tomam para si aquilo que acham ser correto, voltando atrás somente quando a imagem ou o boicote social atinge seus bolsos.
Community e Blackface:
Dado os protestos antirracistas que aconteceram nos Estados Unidos e no mundo, muito da história e cultura pop está sendo revista. Seja “censurando” filmes antigos que continham discursos racistas – mais óbvios -, ou trocando dubladores de personagens de desenhos negros porque o ator é branco. Um caso mais polêmico disso foi a Netflix tirando o episódio “Advanced Dungeons & Dragons”, da série Community (2009), do ar. Nele, os personagens se juntam para jogar uma campanha de D&D e Ben Chang, personagem de Ken Jeong, pinta seu rosto com tinta preta, coloca orelhas pontudas e veste uma peruca prata para interpretar um Dark Elf ou Elfo sombrio.
Conseguimos concluir de forma clara que não foi um caso de blackface em nenhum nível, mas parte da piada poderia ser interpretada como blackface e isso foi o suficiente para a empresa tirar o episódio de sua plataforma, deixando vários fãs frustrados por ser considerado um dos melhores episódios da série e o serviço de streaming. Comportamento esse que, infelizmente, grandes corporações preferem tomar. Não pareceram se importar com o contexto ou intenção da cena e sequer ouviram os argumentos e preocupações da luta negra, tornando o acontecido uma óbvia tentativa de controle de danos para evitar críticas.
O que nos frustra diante dessa situação toda é justamente o comportamento e a forma como os grandes estúdios lidam com tais situações, tomando atitudes apenas quando os erros são apontados e correndo com decisões precipitadas para evitar as justas críticas. Quando questionadas, alegam ignorância ou se colocam como uma corporação que decidiu mudar para acompanhar a evolução de nossa sociedade, mas se pararmos para observar… A nossa sociedade evoluiu para essas discussões somente agora?
Enquanto a discussão acaba sendo sobre censurar ou só emitir um aviso, não parece haver uma tentativa de entender quão nocivo pode ser tal conteúdo caso nenhuma intervenção seja feita. Claro que, como um retrato do momento em que esses filmes foram lançados, pode até ser interessante os usar como exemplos de representações racistas da época, mas em que ponto se torna necessário assistir a um filme de 4 horas onde esse retrato é glamourizado?
Falta profundidade no debate sobre como lidar com essas situações e enquanto tivermos estúdios agindo apenas em modo de defesa para controle de crises públicas com relação a essas temáticas, não teremos o aprofundamento sério que elas exigem.
Houve alguma grande mudança de alguns anos para cá em relação à inclusão de personagens negros nas histórias?
Sim, tivemos algumas mudanças na representação, embora muitos dos problemas ainda continuem a se repetir. Temos alguns avanços com filmes que estão rompendo essas barreiras tanto nas telas quanto por trás delas com posições de direção, roteiro, montagem e demais áreas que compreendem a produção de um filme sendo feitas por pessoas negras. A passos tímidos estamos avançando.
O grande problema dessas concepções racistas é a repetição dessas representações. Não haveria problema se um ou outro filme tivessem alguns estereótipos do tipo, desde que outras produções fossem diversas. A questão é que aparentemente os filmes enxergam negros SOMENTE dessa forma e isso limita atores negros, passam mensagens negativas generalizadas de pessoas negras e reforçam estereótipos sociais extremamente prejudiciais.
Para além da representatividade (negros em papéis), é necessário pensar em como essa representação está sendo feita. Reforçar estereótipos racistas não torna essas produções menos problemáticas das que não possuem representatividade nenhuma.
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