Texto de Fernando Campo Grande, publicado originalmente no site Kolmeia.net
No final de 2019, fui surpreendido pela série da Watchmen produzida pela HBO. Minhas expectativas estavam altas graças aos trailers de divulgação e por ser fã declarado da DC comics. Porém, não estava preparado pelo que estava por vir ,uma vez que a série já começa pelo massacre da cidade de Tulsa – Oklahoma/EUA.
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Confesso que nunca soube sobre essa história, e o próprio diretor (Damon Lindelof) revelou só ter conhecido ao fazer pesquisas para a série. A partir dessa curiosidade me despertou uma pergunta: o quanto de fato sabemos sobre a história negra no Brasil.
Infelizmente, ainda hoje os cerca de 54% da população ainda não possuem as ferramentas necessárias tanto para conhecer a sua própria história, tampouco para contar a sua própria. Logo, esse texto irá escolher um determinado período: a abolição.
Já adianto que a função desta postagem serve para provocar a mesma curiosidade que o primeiro episódio de Watchmen provocou em mim, e se pelo menos uma pessoa que ler de fato for pesquisar sobre 13 de maio, já estarei extremamente grato.
O que estava acontecendo antes da Princesa Isabel assinar a lei áurea?
Aposto que na escola você deve ter ouvido a seguinte narrativa:
” no dia 13 de maio, a princesa Isabel assinou a lei áurea, pondo fim a escravidão dos negros”
Durante muito tempo boa parte da população decorou essa frase tal como os versos do hino nacional. Na verdade, houve até algumas adaptações para TV a colocando como redentora e tudo mais. No entanto, a história não foi bem assim.
Assim como em Watchmen, a história foi bem sangrenta e com vários episódios
Não tivemos um massacre como da cidade de Tulsa, mas nossa história contou com massacres e tramas. Para prepará-lo melhor, assim como nos flashbacks da série da HBO, vamos deixar uma pergunta: Já perceberam que os negros raramente aparecem como protagonista nos atos históricos no Brasil?
Então, é sempre bom relembrar o óbvio, ou seja, tudo isso ocorreu graças a dois fatores. O primeiro deles é que negros eram vistos como propriedade e não como pessoas, quem dirá seres pensantes. O segundo, e também muito importante, o ensino de qualidade estava disponível apenas para as classes dominantes.
Dessa forma, ainda que você fosse branco, se não fosse da classe dominante, muito provavelmente seria analfabeto e corria o risco de não ser tratado como “Branco”. Para o subtítulo desse bloco fazer sentido, vamos falar de um evento em específico, A Guerra do Paraguai.
Esse é outro exemplo de como passamos batidos por eventos chaves da nossa história. Afinal, quantas vezes você ouviu a mentira de que o Brasil sempre foi pacífico? Pois bem, para se ter uma ideia, guardadas as devidas proporções, a Guerra do Paraguai foi um dois maiores conflitos armados do continente sul americano. Ouso dizer que pode ter sido um dos maiores da América. Inclusive, vale muito a pena assistir ao documentário Guerras do Brasil.doc e claro uma conversa com algum pesquisador de história da sua cidade.
Qual a importância da guerra do Paraguai para a abolição da escravidão?
Para exemplificar melhor, irei citar o significado da palavra catalisador. De acordo com o dicionário Michaelis, catalisador é uma substância que altera a velocidade de uma reação química. Com isso, A Guerra do Paraguai foi o catalisador de algo que já estava em curso. Pois, durante o século XIX o número de fuga de escravos, quilombos e até mesmo insatisfação popular só aumentava. Todos eles sempre sufocados pela guarda nacional. Os fatos aconteceram assim:
1 – Brasil decidiu entrar na guerra ao lado da Argentina, porém, mesmo sendo um país gigantesco, não tinha um exército formado. A princípio eles contaram com o apoio dos voluntários da pátria, mas rapidamente passaram a alforriar negros para enviá-los à guerra.
2 – Negros recém libertos lutaram ao lado daqueles que antes os perseguiam. Além disso, o conflito que duraria apenas alguns meses, durou 6 anos.
3 – Ao retornar ao Brasil, os negros livres manusearam em armas, sabiam que o Brasil era a último país a apoiar a escravidão e os soldados do exército eram ex-combatentes.
Ainda sim, em 1870, ao término da Guerra do Paraguai, a elite da época queria re-escravizar os negros. Com isso, restavam 18 anos até o dia 13 de maio de 1888, longe de serem pacíficos ou sem articulações.
A conquista da abolição
De volta ao universo da série Watchmen da HBO, dentro da ficção há uma série de TV chamada American Hero Story. Nela, existe um herói chamado Justiça Encapuzada (Hooded Justice) que usava capuz preto e laço de corda ao redor do pescoço. Além disso, foi o primeiro aventureiro mascarado e a principal influência dos Minutemen, grupo de heróis fantasiados.cujo qual foi um dos membros fundadores.
Ainda assim, ele não tinha nem de longe o papel de protagonista. Antes de continuar o assunto desenvolvido na parte 1, na série fictícia, o Justiça Encapuzada era protagonizada por um ator branco e mais a frente neste texto vocês irão entender o porquê dessa menção específica.
Na edição 179 da revista Aventuras na História, publicada em abril de 2018, há uma matéria que somente um palavrão pode descrever. Com o mesmo título desse bloco, o artigo relata algo que eu já imaginava: os negros lutaram e muito pela abolição.
Primeiramente, fica fácil de imaginar que aqueles negros combatentes da guerra do Paraguai ao voltarem não assistiriam passivamente pessoas sendo chicoteadas. Na edição citada há um relato em especial da formação de uma vasta rede de colaboração, incluindo caixeiros-viajantes e funcionários da rede ferroviária no estado de São Paulo.
Dessa forma, podiam ajudar negros a fugirem através dos vagões e seguirem para o quilombos de jabaquara. Em outra citação, negros alfabetizados liam as notícias para os demais saberem o que acontecia, sem contar aumento do número de negros que se rebelaram por conta própria. Vale lembrar que nesse momento, o exército se recusava a perseguir negros.
Outro ponto importante foi que tanto os EUA, quanto Cuba já tinham abolido a escravidão. Com isso, o Brasil tinha se tornado o último país no ocidente a manter o regime. Dessa maneira, uma parcela maior da sociedade estava insatisfeita com a escravidão. Por isso, em 1880, dez anos após o término da Guerra do Paraguai, a abolição estava nas ruas, na arte, nas manifestações.
Era o início de um movimento civil organizado, muito provavelmente com a contribuição daqueles ex-combatentes da guerra do Paraguai e muitos outros cansados da opressão. Além de figuras como Luís Gama, José do Patrocínio e André Rebouças, todos abolicionistas negros e com grande influência na imprensa e no meio político.
Afinal, o que Princesa Isabel fez de fato?
Nesse mesmo período, os abolicionistas ganhavam cada vez mais adeptos, desde a imprensa, passando por pessoas da elite, membros do governo e assim chegamos a Princesa Isabel. E aqui chegamos em um ponto de divergência.
Segundo Danilo Nunes, mestre em História pela UFRJ e professor de História da SME-Rio, ela sofreu pressão dos abolicionistas, deputados e da Inglaterra. Inclusive, de acordo com o artigo O Lado B da Princesa Isabel publicado na revista IstoÉ, a filha de Dom Pedro II estava bem longe da figura de redentora dos escravos. Diante disso, a assinatura da Lei Áurea possivelmente foi um ato ocorrido muito mais por pressões do que de fato por vontade própria. Ainda que tinha acontecido foi uma vitória para o povo negro naquele momento, outra luta estava começando.
Contudo, há um grupo que reconhece seus atos. Se analisarmos a situação, de fato ela merece parte do reconhecimento, afinal ao assinar a lei áurea, ela teve a coragem que o pai não teve. No episódio 45 do Podcast História no Cast, existe um interessante debate em relação a participação da filha de Dom Pedro II no processo da abolição. Embora eles não a coloquem na figura de redentora, mostram bons argumentos sobre a contribuição dela que inclusive lhe custou o trono. Uma vez que no ano seguinte os militares com o apoio da elite cafeicultura expulsaram toda a família Real. Com isso, a República foi implementada e diferentemente da abolição, sem participação popular.
A Injustiça histórica liga o enredo da série a nossa história
Portanto, atribuir a ela toda a glória do primeiro movimento popular, onde diversos líderes negros contribuíram até com a própria vida é algo tão escandaloso quanto o que aconteceu ao Justiça Encapuzada. Apenas uma observação, o Justiça Encapuzada na série fictícia foi baseado em homem negro que caçava supremacistas brancos protegidos por um sistema corrupto. Logo, toda mitologia dos super-heróis teve início com homem que teve sua história completamente ignorada.
Encerro esse texto com uma observação feita pela também redatora do Kolmeia.net Carla Benevenuto. Na última temporada de Game of Thrones, vimos a criatura mitológica conhecida como o Rei da Noite, tentar a todo custo eliminar o Bran que naquele momento possuía as lembranças de todos os habitantes de Westeros. Se não fosse Arya Stark, Bran teria morrido e assim toda a atenção história existente dos 7 reinos. Com isso, todos estariam condenados eternamente a tal longa noite.
O efeito de não saber a história ou ela ser contada pelo lado do dominante, é o mesmo de deixar a longa noite acontecer.
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