Por Bruno Rico

“Meu filho, se for sair, não esquece o documento, nem que seja para ir ali na padaria”

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Essa frase da minha mãe, que ouço desde criança, sempre me mostrou que o tal 13 de maio da “redentora” Isabel sempre foi uma falácia, afinal, como pode um garoto da favela não poder ir na birosca da frente sem documento, de bermuda e chinelo apenas para comprar um doce?

O medo de ser confundido com bandido, de morrer e ser enterrado como indigente fazem com que as mães pretas peçam para seus filhos pretos evitarem certas vestimentas, certos adornos e até mesmo algumas palavras, ainda mais se o CEP for de uma favela, local onde fomos jogados após a tal abolição.

E para quem fala que branco pobre é quase preto, eu trago o relato de vida de uma mãe chamada Fatinha, moradora da Rocinha que conheci nas andanças da minha militância. Fatinha é branca, nordestina, teve um filho branco e outro preto, o filho preto se chamava Hugo, depois de uma passagem pela polícia, decidiu não voltar para o crime e ficava no morro procurando alguns bicos para sobreviver, em uma incursão policial, os policiais foram em cima de Hugo, já sabiam que ele tinha passagem, e um preto com passagem não tem paz, Rafael Braga e tantos outros que o digam, e nesta operação Hugo foi executado em uma viela, sem estar armado ou oferecer perigo, estava apenas de bermuda, chinelo e sem documento, da mesma forma que minha mãe tinha medo que eu morresse.

O mais curioso disso tudo é que nesse mesmo período, o filho branco de Fatinha estava no tráfico local, e quando chegaram para dar a notícia que um filho havia sido assassinado, ela logo associou ao filho branco, até porque toda mãe sabe que a consequência dessa vida é caixão ou cadeia.

Chegando ao local, Fatinha caiu em desespero ao saber que seu filho preto, que não devia mais nada para a justiça e estava tentando ter uma nova vida, sangrava que nem um bicho em um beco e em um evento que participou, essa mãe de fibra fez questão de dizer para o público presente que o filho branco dela, o mesmo que era do crime, nunca havia sequer sido parado pela polícia no morro, nem na época de moleque, os olhos claros e a pele branca garantiam esse direito, que nunca foi dado ao irmão Hugo.

Seguindo este exemplo real, eu vos digo: não! O branco pobre não é quase preto, ele continua sendo branco. Esqueçam esse argumento.

Mas nunca se esqueçam o fato de que a liberdade do dia 13 de maio de 1888 nunca existiu, naquele dia foi decidido que iríamos para outro patamar de escravidão, que perdura até hoje.

O projeto incluía um deslocamento muito bem definido, saímos de senzalas para cortiços e posteriormente favelas, criminalizaram a nossa cultura para que pudessem nos jogar nos presídios, falaram que a capoeira era crime, que o samba era vadiagem, não podíamos fazer nossos cultos, tudo isso era crime. Como se não bastasse, colocaram o projeto de eugenia na nossa Constituição, dizimar o povo preto foi um plano de estado, documentado pelo último país das Américas a “abolir” a escravidão.

Hoje, este mesmo Brasil que a bandeira estampa “Ordem e Progresso”, ainda trabalha para o apagamento da nossa história. Na escola eu não aprendi nada sobre os abolicionistas negros, a heroína da minha falsa liberdade sempre foi a Isabel, e mesmo com uma lei (10.639) que exige o ensino de cultura afro-brasileira nas escolas, nossas crianças pretas seguem sem saber dos nossos verdadeiros heróis e heroínas, e isso interfere diretamente na autoestima destes jovens.

Enquanto a mulher negra for obrigada a ser a mais forte, inclusive recebendo menos anestesia na hora do parto, não podemos falar de abolição plena.

Enquanto o homem negro seguir sem poder errar em nada, e permanecer sendo associado a um processo de animalização, não podemos dizer que a Lei Áurea mudou muito a nossa vida, pois mesmo adulto, eu sigo evitando sair sem documentos, pois as amarras do racismo estrutural ainda permanecem na mente.

 

Bruno Rico – Escritor e publicitário

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