A minha infância ocorreu há décadas, mas as memórias daquela época continuam cristalinas, principalmente quando se aproximam as datas comemorativas no calendário nacional; ocasião em que o comércio investe, intensamente, nas publicidades para alavancar o consumo da população. Para a minha família, nada mudava. Os dias continuavam sendo de muita luta, a pobreza apresentava as mesmas feições.
As doações de alimentos que recebíamos davam um pequeno alívio; também ganhávamos roupas, calçados e brinquedos usados da vizinhança. Meus pais não paravam, ambos trabalhavam informalmente. Ora tomavam calotes dos contratantes, ora recebiam uma miséria. Porém, apesar de todos os esforços, as dificuldades não cessavam nas nossas vidas. Por isso, não suporto as línguas malditas dizendo “os pobres são acomodados”.
Lembro com muita tristeza do Dia das Crianças, pois eu não ganhava nada e tinha que testemunhar as crianças ostentando seus presentes. E eu no meu cantinho sentindo um amálgama de sentimentos ruins. Às vezes até contava umas lorotas: “ganhei uma bola, bicicleta, carrinho ….. mas a minha mãe não deixou eu trazer”. Na realidade, os brinquedos dos meus sonhos se tornaram a matéria-prima das minhas mentiras.
Os tempos são outros, no entanto, percebo que as condições de vida da maioria das pessoas negras são parecidas com a que passei. O racismo continua acorrentando as famílias negras nos menores estratos econômicos. Da mesma maneira que aconteceu comigo, as crianças negras sofrem muitas privações, enquanto as crianças brancas gozam de um leque de privilégios.
E veja só, desde cedo as crianças negras aprendem que são odiadas por muitas pessoas ao redor. Alguém argumentará “crianças brancas pobres também sofrem”, desconsiderando que são camadas diferentes de opressão. A pessoa deveria compreender que, quando há racismo, nada é comparável. Mesmo porque o problema também é emocional, o dinheiro não tinge o negro de branco. Dito isso, lutemos contra a branquitude para que os olhinhos negros não continuem marejados.
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