
Em Vale Tudo, Solange Duprat aparece como uma personagem feminista, intelectual e ousada, alguém que parecia se colocar contra a ordem estabelecida. No entanto, ao revisitarmos sua trajetória a partir de 2025, percebemos que sua resistência é apenas uma performance autorizada pela branquitude. Enquanto Solange enfrenta Odete Roitman dizendo que é resistência e, como prêmio, recebe um emprego em Paris, Raquel, símbolo da mulher que nunca foi acolhida por esse feminismo, volta para o lugar de sobrevivência, precisando recomeçar. Esse contraste expõe as camadas do que chamamos de feminismo branco, uma luta que se apresenta universal, mas que na prática só beneficia mulheres já situadas nos lugares de privilégios.
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Sueli Carneiro lembra: “A mulher negra é a base de uma pirâmide social que a oprime duplamente, pelo racismo e pelo sexismo”; essa frase evidencia o que Solange não enxerga. Sua narrativa de resistência não considera que mulheres negras e pobres vivem em outro patamar de opressão. Para Raquel, não há Paris, há o peso do cotidiano do recomeço, o trabalho informal, a luta pela sobrevivência.
James Baldwin ajuda a desnudar esse mecanismo ao afirmar: “O mundo não é branco. Nunca foi brando, não pode ser branco. Branco é uma metáfora para o poder.” O feminismo de Solange Duprat encarna exatamente essa metáfora, uma luta que se diz resistência, mas que reforça a centralidade do olhar branco como medida de todas as coisas. Quando Baldwin afirma que “na verdade, não existe comunidade branca”, ele aponta para o vazio dessa identidade construída como universal. O feminismo branco é, nesse sentido, uma ficção que apaga experiências diversas e as enquadra no molde da imaginação branca.
A canção De dentro do AP, de Bia Ferreira, ecoa essa crítica ao perguntar: “Quando foi que cê pisou numa favela pra falar sobre o seu fe-mi-nis-mo?”. É a denúncia de um feminismo de apartamento, classe média alta, distante da vida e realidade de tantas mulheres negras que batalham todos os dias fora dos espaços seguros da classe média. Que precisam também lidar com as violências do estado. Solange fala em resistência no conforto da sua sala, já Raquel enfrenta a dureza de recomeçar de novo na areia quente da praia, lidando com a precariedade que a música de Bia escancara.
Mas há ainda uma camada a mais: o feminismo branco, como Solange representa, também costuma ser transfóbico. Ao defender uma ideia restrita de “mulher”, que exclui mulheres trans e travestis da luta, reafirma a lógica da branquitude, decidindo quem pode ser sujeito político e quem deve permanecer na margem. Audre Lorde já denunciava que “as ferramentas do mestre nunca irão derrubar a casa do mestre”. A transfobia dentro do feminismo branco é uma dessas ferramentas, mantendo a casa intacta e sustentando o privilégio cisgênero e branco como norma.
Baldwin também advertiu: “O poder do mundo branco é ameaçado sempre que um homem negro se recusa a aceitar as definições do mundo branco.” Podemos expandir: o poder do feminismo branco e transfóbico também é ameaçado sempre que mulheres negras, trans e indígenas recusam-se a aceitar as definições da branquitude e da cisgeneridade sobre o que é feminismo, resistência e emancipação. Esse gesto de recusa abre caminhos para outras narrativas, outras epistemologias, outros feminismos.
Por isso, quando Solange afirma ser resistência, mas colhe benefícios que a branquitude lhe oferece, ela não rompe estruturas, apenas reafirma o lugar da mulher branca e cis como protagonista das histórias de emancipação. Já Raquel, na praia, encarna o que Audre Lorde chamaria de a luta real, aquela que não pode derrubar a casa do mestre usando suas ferramentas. Sua resistência não é “premiada” com Paris, mas com a possibilidade de continuar viva, criando novos começos a partir de recomeços forçados.
A diferença entre Solange e Raquel é a mesma diferença entre um feminismo que serve como instrumento de opressão e um feminismo negro e transfeminista que nasce da experiência concreta da exclusão. Como escreve Baldwin, “Porque eles pensam que são brancos… não podem se permitir ser atormentados pela suspeita de que todos os homens são irmãos.” Da mesma forma, porque pensam que só as mulheres cis importam, não podem reconhecer irmandade com mulheres trans e travestis. O feminismo branco não se permite reconhecer solidariedade com quem rompe seus limites. Prefere se esconder na fantasia de um universal que nunca existiu.
No fim, a crítica a Solange Duprat não é apenas à personagem, mas ao projeto de feminismo que ela simboliza. Um feminismo que lê Simone de Beauvoir, mas não lê Sueli Carneiro, Megg Rayara Gomes de Oliveira e tantas outras intelectuais negras, indígenas, trans e travestis. Que se fala de resistência, mas não pisa na favela, no subúrbio… Que exclui mulheres trans e travestis de suas fileiras. Que recebe Paris, enquanto outras recebem o peso do recomeço. E nesse abismo, o feminismo negro e transfeminista insiste em dizer: não haverá liberdade para algumas, enquanto outras permanecerem nas margens da sobrevivência.
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