Alice veio para mudar a minha vida. Para trazer um novo fôlego em um ano tão emblemático: 130 anos do pós-abolição. E agora? Neste meu primeiro dia das mães, me sinto ainda mais motivada para lutar por mais igualdade de oportunidades. Por ela… por mim… por nós. Porque se nós não fizermos, quem fará?
Por Luana Genot – Diretora executiva do ID_BR
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Na segunda-feira, dia 19 de março de 2018 às 17:10 na Perinatal Laranjeiras (Rio de Janeiro), Louis e eu fomos abençoados com a chegada da nossa tão esperada Alice. Para além das nossas possíveis expectativas,
Vimos materializados em 3,8 quilos e 52 cm o fruto de nosso amor, um presente de Deus.
Foram 14 horas da mais linda e dura maratona da minha vida. Um parto normal sem anestesia, da maneira como desejei, por entender que este era um processo natural.
Mas vamos dar uma olhada no filme, para além da fotografia deste momento. Pra mim, a preparação para uma gravidez planejada começou há mais ou menos dois anos. Lembro que na época, assisti um documentário chamado o Renascimento do Parto, que jogava luz sobre a industrialização do parto no Brasil, incentivava partos normais e a busca por práticas mais humanizadas.
Achei super coerente e comecei a me questionar sobre meu próprio parto, que tinha sido uma cesárea, e as várias histórias que já tinha ouvido e sobre as necessidades de fazer cesárea (cordão enrolado no pescoço, bêbê sentado entre outras). Até então, pelas experiências próximas praticamente não havia outra opção que não fosse esta. Muito comum também com outras colegas ter ouvido experiências do tipo: você é forte, nêga, você aguenta..
A lógica do racismo incidindo sobre a visão de pessoas, mesmo de profissionais de saúde, em relação às mulheres negras como as que eram mais fortes e que aguentam mais a dor. E isto sempre me deixou com muita raiva e também medo…
Nesta época, comecei a ouvir falar sobre a importância da figura da doula neste processo.
Ainda não tinha muita ideia de como funcionava. De quando deveria aciona-la. Ao mesmo tempo já tinha plena consciência do privilégio de ter acesso a informações como esta e a opção de ir tanto para o sistema público, se assim eu quisesse, como para o privado, diferente de muitas mulheres negras como eu.
Lembro que saí do cinema decidida a mudar de ginecologista, uma vez que a minha do momento já havia me dito que parto para ela era cesariana. Ainda bem que tinha sido sincera.
Comecei a partir daí minha busca por outras profissionais que pudessem ter uma prática mais alinhada com o parto humanizado. Achei a Dra Karina. Com ela comecei a dividir meus anseios e vontade ainda longínqua de me tornar mãe.
Dois anos se passaram. E na virada de 2016 para 2017, decidimos que poderia ser o momento. Não demorou muito. Alice (que também poderia ter sido Hugo) já se mostrou pra nós nos exames. Decidi levar uma gravidez mais ativa possível. Fiz exercícios, incluindo uma prova de cinco quilômetros de corrida.Também me apaixonei pela aula de circuito – uma classe multifuncional onde pude fazer diferentes exercícios, agora de forma mais moderada e cautelosa, em uma só aula: de pular corda a flexões. A professora Luiza me incentivava bastante. Louis me acompanhou todo tempo e Alice se tornou uma companheira desde o útero.
Troquei meus presentes de aniversário por pedido de fraldas. Ganhamos várias de diversos tamanhos. As páginas de desapego passaram a ser super aliadas. Boa parte do meu enxoval achada nestes sites. Também ganhamos muitas coisas de amigos e familiares. Fomos também em uma feira de gestantes para comprar algumas peças faltantes. Me incomodava muito não ter mães, pais e famílias negras nos catálogos. Lembro ter deixado de comprar em algumas lojas inclusive e de ter tido várias discussões sobre representatividade. Alguns vendedores viam com estranhamento a pauta e eu era tida muitas vezes como a grávida chata do mimimi.
Também teve a parte da doula. Ao conversar com algumas amigas, elas me aconselharam a ter uma. Entrevistei algumas e rolou uma química muito forte com a Flavinha. Com ela, descobri pouco a pouco o real papel desta profissional. Dividi com ela minhas dúvidas, fizemos um plano de parto e com isso foi acontecendo uma preparação mental e física para uma grande dor. Uma dor do bem, do amor, mas que não deixava de ser uma das maiores dores que passaria na vida e que não tinha regra. Cada parto era um parto.
40 semanas se passaram entre o trabalho, orações, dores, exames incômodos sempre acompanhada pelo pai, desejos, um alarme falso, hormônios, dúvidas, exercícios, muito amor e apoio. A data prevista era o dia 14 de março. Algumas colegas que ficaram grávidas e tinham datas previstas próximas já tinham tido seus bebês. E as pessoas do meu entorno começaram a dizer: “será que não é hora de uma cesárea?” “O bebê já deveria ter nascido, não? Deve estar sofrendo aí dentro!” E também “estou ansiosa para ver qual vai ser a cor do bebê, tira logo ela daí”.“Será que pode ter olhos claros, tomara…”.Sei que muitas mensagens desde as que falavam sobre o parto às que tinham cunho racial não eram necessariamente propositais mas mexiam comigo e me deixavam ora com raiva, ora muito ansiosa em diversos aspectos e aquilo me fazia mal. Perdi a conta de quantas vezes tive que repetir para amigos e parentes que não tinha data marcada para o parto ou não estava esperando uma bêbê com olhos claros e que valorizar isso era parte do racismo nosso de cada dia.
Meu principal desafio foi certamente o lado psicológico. Nunca deveria ter anunciado a data prevista, pois elas confundiam com a data de uma cesárea marcada que elas mesmas imaginavam automaticamente.
Lembro que com 40 semanas e 3 dias, tive uma dica de ouro. Me isolei. Me concentrei. Desliguei o celular. Orava, meditava e me conectava com Alice. Fiz duas sessões de acupuntura que me ajudaram no processo expulsivo, comi as famosas tâmaras (conhecidas por ajudar as contrações). No sábado comecei as sentir os sinais de que o grande momento estava por vir. As contrações não eram muito ritmadas no início. Tinha tampão mucoso mas a bolsa ainda não havia estourado. No domingo, fui tomada por dores mais fortes. Já não era mais eu. Oscilava entre momentos de maior lucidez e outros de gritos e fortes dores que me pediam para fazer uma força para baixo. Eu já não encontrava mais posição para sentar ou deitar. Fui até a maternidade. Estava com dois centímetros de dilatação. Voltei.
Liguei pra doula, que chegou a meia noite, acompanhada da fotógrafa Marina. Uma escolha de último momento muito acertada. Sim, registrei um dos momentos mais importantes do filme da minha vida para a posteridade. a partir deste momento sabia que não teria mais volta. Falei com a Flavinha emocionada: “ela está chegando…”
Tive uma crise de choro, de medo, de ansiedade. Clamava a Deus… pedia força. Flavia me massageava na minha cama.No quarto com luz baixa, colocou alguns aromas, o de lavanda me marcou. Este acompanhamento foi fundamental. Me senti fortalecida. Às 4h da manhã retornamos na maternidade. A médica me tocou e disse que já estava com 5 centímetros de dilatação. Chamamos a obstetra. Karina chegou e fomos direto a sala de parto. Na minha cabeça o pensamento de que o momento estava se aproximando #soquenão.
Colocamos Sabotage – Respeito é pra quem tem, a trilha perfeita. Alice já nasceria com a mensagem política do rap. Luzes baixas. Louis e eu começamos a dançar. Sua presença foi fundamental neste momento. O ambiente propício e privilegiado do parto humanizado. Fomos para a banheira quente (meu sonho na época era ter um parto semelhante ao da Bela Gil, o do Nino, na piscina). Contrações iam e voltavam, mas não era ritmadas e o tempo passava. Pessoas olhavam o relógio. Aquilo me incomodava.
Medimos e as contrações não evoluiam muito. Em um dos toques que recebi, diagnosticamos um edema que poderia colocar em risco nossos planos. Fiquei com medo.Começava a figurar na minha cabeça que pela demora alguém ia acabar me dizendo que seria necessária uma cesárea. Sentei na bola. Flavinha me massageava. Me fazia exercitar, mexer bem o quadril, a não desistir. Ali, naquele momento, entendi que o papel da doula foi fundamental, não só pelo lado físico como psicológico. Já eram quase 14h.
A médica me sugeriu estourarmos a bolsa e ver se isso poderia ajudar a acelerar as contrações. Assim fizemos. A principio, eu estava avessa a ideia de qualquer outra intervenção artificial, mas concordei. Apenas frisei que não queria outras intervenções e queria que evitássemos toques. Ter o poder de escolha de não querer anestesia, por ter me sentido pronta para esta dor e ter uma equipe de apoio, não deve ser visto como um parâmetro para uma mulher negra no Brasil. Não quero tampouco reforçar o estereótipo de que mulheres negras são mais fortes. A raça não nos faz mais fortes, apenas uma crença reforçada por uma história escravocrata ainda racializada que insiste em associar pessoas negras à força e a resistência mesmo 130 anos após a abolição da escravatura. Apenas queremos e lutamos para ser iguais.
Me sentia bastante fragilizada e insegura em alguns momentos, em outros me sentia uma verdadeira leoa que tinha se preparado par sentir esta dor. Não nasci sabendo lidar com ela. Recebi muito suporte. A história da aldeia para cuidar de uma criança, como conta o provérbio africano, no meu ver começa antes do parto. Não foi puramente instintivo.
As 15h30 contrações finalmente pareciam tomar ritmo, mas eu ainda não sabia se iriam engrenar. Eu não achava postura para ficar. Não conseguia sentar, não podia deitar. Tinha que mover o quadril. sentia vontade de fazer força. Estava super confusa. Mas algo me fazia colocar as mãos para cima como se precisasse de algo para puxar e fazer força. Karina deu a ideia de pendurarmos um pano no teto. E lá fui eu. De cócoras comecei a puxar aquele pano do teto, bem como fazia nas aulas de circuito, no exercício de TRX – um exercicio de braços que usa o peso do corpo. Alternava com a posição de quatro apoios na cama. Sem que eu pudesse perceber um ritmo foi se criando. Ao som de uma música bem repetida com mantras colocada pela doula, comecei a entrar em um estado de plena concentração. Este processo levou um tempo que eu mal senti passar.
“Olha, a cabecinha já está descendo…” Alice está aqui. Meu coração disparou. Sabotage voltou. Fiz a maior força da vida. Ela finalmente desceu sozinha e foi acolhida pelas mãos da obstetra e do papai às 17h10. Ao som de “Respeito é pra quem tem”, eu estava paralisada. Só conseguia falar: “você chegou!” O parto normal finalmente aconteceu.E divido com você um pouco do que foi este momento tão especial e singular na minha vida neste link.
O pediatra levou ela ao peito. Trocamos nosso primeiro olhar, nos demos calor. .
Placenta e costura a parte – sim tudo isso dói muito -, um amor absurdo tomou conta de mim.
Eu agora era mamãe de verdade… Quarto, visitas… eu realmente estava com medo de sair da maternidade, pois não sabia se seria hábil a lidar com aquela pequena menina que dependia de mim praticamente para tudo.
Quando saí, já tive que voltar o leite desceu forte e amamentar parecia uma dor mais forte que o parto. Quando Alice chorava de um lado, eu chorava do outro. Procurei ajuda e encontrei na pediatra, na doula, em consultoras de amamentação, no SUS.
Fui à Maternidade Escola da UFRJ e tive acesso à dicas preciosas como massagem nos seios, ordenha manual e acerto na abertura de boca da Alice para melhor encaixe no peito (a famosa péga) e um incentivo absurdo para não desistir. Também encontrei muitos profissionais no caminho que tentaram me vender a ideia de que a dor era normal e até a possibilidade de uma intervenção cirúrgica em Alice para estimular que ela abrisse mais a boquinha chegou a ser cogitada, mas não fomos adiante.
Aprendi que amamentar, diferente das imagens românticas que via, pode ser bastante doloroso, confuso pelos mais diferentes palpites e direções que são apontadas, e que precisar de ajuda é mais do que normal e frequente do que se diz.
Nada de “você é forte, nêga”! Eu chorava e me sentia só, culpada. Mesmo com todos os privilégios das escolhas que pude fazer e dos serviços que pude ter acesso. Virei amiga da bomba elétrica que me permitia ter horas de autonomia graças ao aleitamento compartilhado com o pai, que pôde dar os copinhos da madrugada com o leite que retirava. Amamentar ainda tem sido um exercício diário que de fato se tornou mais fácil depois de ajuda e preparo psicológico, algo que não foi natural. Foi um processo de aprendizado.
Todas estas vivências e suas delícias e dores me fizeram refletir e respeitar ainda mais as escolhas de todas as mulheres. Aprendi: respeite quem quer amamentar, mas também quem não quer, por que só quem sofre a dor sabe. O ideal é que seja uma escolha não uma imposição social, racial, histórica. Respeite quem quer fazer parto normal e também quem quer fazer cesárea, por que só quem é mãe, que sofre a dor sabe. O mesmo vale para as nossas lutas, as nossas causas. O racismo é uma dor que decidi transformar em uma luta de vida.
E minha gestação, parto e puerpério foram e tem sido sempre entremeados de discussões sobre a questão racial e quanto situações humanizadas ainda são menos frequentes para mulheres negras. Mais do que nunca, nesse 130 anos de abolição da escravatura, a minha escolha é lutar para que todas tenhamos escolhas e possibilidades de melhores oportunidades.
Aprendi e aprendo: respeite quem luta por uma causa, por que só quem sofre a dor sabe. Respeite quem luta contra o racismo, por que só quem sofre a dor sabe.
Respeito é pra quem tem.
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