
A culinária afro-brasileira é um patrimônio cultural vivo que atravessa gerações, e entre os nomes que representam essa continuidade com força, Solange Borges se destaca. Chef, empreendedora e mulher de terreiro, Solange transforma a tradição da “Culinária de Terreiro” em um projeto contemporâneo de valorização cultural e inovação social.
Com formação em Letras e Fitoterapia, ela une saberes acadêmicos aos conhecimentos ancestrais herdados da mãe, valorizando a oralidade e o legado ancestral. Sua trajetória inclui o pioneirismo de levar a culinária preta para novos espaços, como a abertura de um restaurante em shopping, um marco importante para a gastronomia afro-brasileira:
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“As pessoas querem saber como consegui colocar um restaurante ‘Culinária de Terreiro’ em um shopping.”
Nesta entrevista exclusiva ao Guia Black Chefs, Solange reflete sobre ancestralidade, tecnologia, racismo religioso, festivais, empreendedorismo negro e o papel da gastronomia preta na resistência cultural.
1. Como você descreve a relação entre a culinária de terreiro e sua ancestralidade, especialmente em pratos como acarajé e dendê de pilão?
“Eu tenho dito, né, que hoje a culinária de terreiro… eu faço pratos que mainha me ensinou, né? São receitas que mainha me ensinou. Então, a minha ancestralidade está conectada, especialmente com o acarajé e o dendê de pilão, nessa questão de ser continuidade, de trazer algo que meus ancestrais já faziam. Nós estamos na quarta geração fazendo o acarajé.
O dendê de pilão entrou na minha vida a partir da Agrovila Pinhão Manso. Quando cheguei na agrovila, eu vi os pés de dendê, e ali eu fui buscar como aprender. Aprendi com uma família que também era ancestral nisso, nesse preparo, que foi a família de Orlando, que já fazia há muitos anos, e eu fui aprender com eles. Depois, eu fui também pegar aprendizado aqui na minha comunidade, com as mulheres que já faziam dendê. E junto com elas, eu comecei a trabalhar o dendê aqui na minha comunidade.
A gente valorizou esse dendê, porque muitas mulheres não queriam mais fazer, já que as pessoas não queriam pagar o valor de um litro de dendê. A partir do momento que eu fui para as redes sociais e mostrei como é o trabalho de fazer dendê, isso modificou muito. Elas vendiam a R$25; hoje, elas vendem a R$60, R$70, R$80. Então, mudou muito essa realidade. Eu me conectei com o acarajé e com o dendê de pilão nessa perspectiva desses ancestrais que vieram antes de mim, e eu sigo ainda essa continuidade.”

2. Você aprendeu as práticas de preparo no terreiro com sua mãe e ascendeu isso em conhecimento acadêmico em Letras e Fitoterapia. Como essa formação dialoga com os saberes transmitidos oralmente pelos terreiros?
“Eu aprendi as práticas do terreiro tanto com mainha quanto nos terreiros que eu comecei a participar, na vivência na cozinha. Em vários terreiros, eu consegui ver como era o preparo, participar, né? Porque o terreiro é assim: as comunidades fazem. Então, você vai para outro terreiro, você tem a sua habilidade, o pai, a mãe, convida você a participar e você faz. Quando corta para santo de alguém e você tá lá, você vai, você trata, você cozinha. Nesse meu trabalho comunitário, eu consegui entender essas práticas.
O conhecimento acadêmico em Letras, por exemplo, me trouxe o entendimento que eu avancei, mas que não precisava só avançar. Por exemplo, eu aprendi na faculdade a palavra “cotidiano”, e eu me senti importante. Fui me sentar com minha vizinha na porta de casa para poder falar e ensinar, e ela ficou me olhando com cara de paisagem. Então, eu entendi ali que esse saber… eu preciso entender ele, mas eu preciso também compartilhar de forma diferente com as pessoas que não têm o conhecimento acadêmico.
Existe uma Solange que conversa com gente que não tem conhecimento acadêmico e uma Solange que conversa com gente que tem. Esse conhecimento acadêmico me ajudou nesses avanços, mas também me fez entender que, para me relacionar com povos e comunidades tradicionais, ou com pessoas que não têm o letramento, eu precisava ser uma Solange sem esse conhecimento científico.
Agora, a Fitoterapia: quando eu fiz Fitoterapia na UFBA, eu entendi perfeitamente que todo aquele conhecimento era tradicional, ancestral. Porque mainha nunca cozinhou mastruz, por exemplo. E lá, eu vi na aula que mastruz a gente não cozinha, porque, se cozinha, perde os óleos voláteis, perde os benefícios.
Então, o que está na academia são os conhecimentos tradicionais; são os saberes que as nossas comunidades têm, e que os estudantes, os pesquisadores, sistematizam e colocam no livro. Eu entendi isso perfeitamente. Ali eu fiquei muito mais forte no meu saber. Muito orgulhosa de que esses saberes vieram para o livro didático, como são os saberes das comunidades tradicionais.”

3. O Festival do Dendê celebra a força da cozinha preta, que carrega orixás, axé, memória e resistência. O que significa pra você ocupar esse espaço como parte dessa herança viva?
“Olha, significa pra mim que a gente tem que sair desse lugar. A gente tem que falar do nosso negócio, do nosso lugar, do nosso propósito, do nosso conhecimento ancestral.
O Festival do Dendê, pra mim, foi a oportunidade de mostrar o nosso dendê, o dendê de pilão, que é a base da culinária baiana. O dendê é o ouro da Bahia. Você chega na Bahia, você encontra as baianas de acarajé, que são as herdeiras, as primeiras mulheres a empreender, as primeiras a mercar. As primeiras empreendedoras desse país.
O Festival do Dendê veio como oportunidade de visibilizar esse lugar e falar da importância de valorar esse trabalho, esse ingrediente que é tão importante pra gente. Então, eu trouxe o Festival com essa perspectiva, de visibilizar essa questão, inclusive trazendo chefs de nível nacional e referências de nível nacional, para a gente conseguir realmente furar essa bolha, não falar somente para a gente, mas para um grupo maior de pessoas.”

4. Num país onde o racismo religioso e a intolerância ainda tentam apagar o candomblé e as contribuições das mulheres negras, o que significa para você levar a cozinha de terreiro e saberes ancestrais para o mundo?
“Significa que depende de nós. Quando eu comecei a fazer culinária de terreiro, eu pensei na importância de fazer isso e sonhei bastante alto. Mas a gente fica focando só na intolerância. A gente não foca que precisa visibilizar nossos conhecimentos, mostrar nosso saber, reforçar nosso conhecimento.
Então, eu não foquei no racismo e na intolerância. Eu foquei em levar o saber que a gente tem para outras pessoas saberem o que estamos fazendo, para outras pessoas tomarem parte. Porque, às vezes, as pessoas são intolerantes ou racistas mesmo, às vezes é porque não conhecem. Foi nessa perspectiva que eu me coloquei para sair do meu lugar, da minha comunidade, na Agrovila Pinhão Manso. Com uma antena via satélite, eu comecei a falar, mesmo sabendo que ia ter hater, que iam me criticar, que não iam me seguir.
Em vez de ficar chorando, dizendo “mas elas não…”, eu fui pro embate. Eu quis mostrar minha religiosidade, falar da minha matriz, mesmo sabendo que receberia críticas por isso. Mas eu não aguentava mais a gente sendo invisibilizada, com nossos terreiros sendo invadidos. Eu me senti assim porque acredito que, quando a gente tem poder e visibilidade, é difícil alguém mexer com a gente. Muito difícil. E a rede social é uma forma de trazer poder pra você, pra sua comunidade, pro que você está fazendo.”

5. Que papel você acredita que a tecnologia, como aulas ao vivo, e-books e mídias sociais, tem na expansão dos saberes de culinária de terreiro sem perder a profundidade espiritual?
“Essa comida que eu discuto na culinária de terreiro, inclusive, levei para o shopping, veio com a perspectiva de trazer a comida do quintal, da roça. Uma comida que tem história, que tem matriz, que é matriz africana, para discussão, para o shopping e para as aulas. Mas a comida que eu levo na culinária de terreiro não é a comida de santo. É a culinária tradicional. A culinária que tem história, que tem cultura, e que está em todos os lados do Brasil. Porque em todo o Brasil você come cocada, acarajé, vatapá, feijoada, caruru. Essa é a comida tradicional. É essa a comida que eu tenho ensinado.
Agora, eu sou uma mulher de candomblé. Se uma pessoa me pergunta em uma dessas aulas: “Chef, e esse acarajé que a senhora nos ensina?” eu explico: esse acarajé é uma comida ofertada para um Nkisi, Kaiango, no meu caso eu sou angoleira, e também é ofertada para a orixá Iansã. E assim a gente vai explicando. Porque eu sou uma mulher de candomblé, então eu explico.
Agora, uma coisa é você fazer esse acarajé para comer no restaurante, para comer em casa. Outra coisa é você estar no terreiro para oferecer essa comida. Aí você tem que passar pela ritualística do terreiro. E essa ritualística eu não coloco nas minhas aulas. Porque você tem que chegar no terreiro, pedir bênção à mãe de santo, ao pai de santo, tomar banho de folha e passar pelos processos.
A minha perspectiva de ensinar a culinária de terreiro é para que as pessoas possam dominar as técnicas tradicionais. Que possam fazer o acarajé como é na tradicionalidade: feijão, cebola, sal e frita no dendê. É essa a perspectiva que senti necessidade de trazer para as redes, nesse empreendimento. Porque tem muita gente que não sabia mais como fazer um acarajé, um vatapá, um caruru, e isso eu ensino, tanto nos meus e-books quanto nas minhas aulas.”
6. O Julho das Pretas nos convida a celebrar as conquistas das mulheres negras, mas também a refletir sobre os desafios que persistem. Qual espaço a gastronomia tem nesse debate e como você tem marcado presença nesse mês?
“Eu participei de várias marchas, de movimentos de mulheres. Fiz movimento de “Mulheres no Rio de Janeiro, fui ao Mulheres Rumo a Beijing . Sempre estive nas lutas. Estou na base do MNU, desses movimentos todos.Comecei a militar nos movimentos antirracistas com 15, 16 anos, ainda no movimento estudantil. Faço essa movimentação há muito tempo e sei da importância disso. Caminhei com muitas das mulheres do Instituto Odara por muitas batalhas.
A gastronomia, pra mim, é um veículo muito importante. Porque comida… todo mundo pode falar sobre comida. Todos temos pertencimento. Sempre tem uma comida, um movimento de comida nas nossas famílias. Está em todos os lados. Minha presença nesse momento tem sido para falar sobre o empreendedorismo negro: como consegui estar nas redes, como consegui participar de tantos movimentos nacionais. Agora, em setembro, vou participar de um evento internacional.
As pessoas querem saber como consegui colocar um restaurante em um shopping com o nome “Culinária de Terreiro”. Como empreendi o acarajé dentro de um shopping. E hoje me convidam pra falar sobre isso. Ainda não estou financeiramente confortável, porque exige muito investimento, mas sei que vai acontecer. Tenho marcado presença no Julho das Pretas falando sobre o empreendedorismo das mulheres negras, e isso me honra muito.
Esses dias, eu me emocionei bastante. Dei muitas palestras em escolas, vi alunos falando do meu trabalho, fazendo mural, poesia… Foi algo sem precedentes. Isso me enche de esperança de que nossa cultura realmente pode ser reverberada no que fazemos, no nosso modo de fazer, no nosso falar, na nossa forma de se posicionar.”

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