Quando o samba é só festa: o apagamento da ancestralidade negra no pagode e no samba

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Quando o samba é só festa: o apagamento da ancestralidade negra no pagode e no samba
Foto: Divulgação

Texto: Luciano Ramos

O samba nasceu do corpo negro. Nasceu das dores e da reinvenção dos afetos de um povo que foi escravizado, perseguido e silenciado. Cada batida do tambor, cada cadência do surdo, cada lamento que virou melodia é herança de resistência. O samba é reza. Mas há quem insista em transformar essa herança em apenas entretenimento — esvaziada, embranquecida, despolitizada.

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Nos últimos anos, observamos o crescimento de rodas de samba e grupos de pagode frequentados majoritariamente por pessoas brancas, em especial nas grandes cidades brasileiras. A princípio, pode parecer positivo ver o samba e o pagode atravessando fronteiras raciais e ganhando espaço. Mas há uma fronteira que não deveria ser cruzada com desrespeito: o esquecimento da origem.

Quando pessoas brancas consomem o samba como se fosse apenas “música boa para dançar e beber”, sem reconhecer a ancestralidade negra que pulsa em cada acorde, praticam um tipo de apropriação cultural que não é ingênua — é política. É o mesmo mecanismo colonial que esvaziou o axé de seu sentido espiritual, que transformou o jongo em atração turística, que tenta pasteurizar o funk para torná-lo palatável às elites.

Pior: muitas vezes, nesses espaços, pessoas negras não se sentem acolhidas. São vistas como intrusas naquilo que ajudaram a construir. O racismo, aqui, opera com sutileza cruel — não é o da exclusão direta, mas o da expropriação simbólica.

Isso não é sobre impedir pessoas brancas de cantarem ou celebrarem o samba. É sobre o compromisso com a memória, o respeito à origem, a valorização de quem historicamente construiu esse território musical como lugar de afirmação cultural, religiosa, política e afetiva. O samba é resistência. O pagode é afeto preto. E não existe afeto verdadeiro quando há apagamento.

Cantar samba exige escuta. Dançar pagode exige reverência. Participar desses espaços demanda consciência de que eles foram — e ainda são — territórios de luta negra.

Se queremos um Brasil onde a cultura una, ela precisa, antes, reconhecer as raízes de onde veio. E o samba, meus amigos, não nasceu em Ipanema.

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