Texto: Shenia Karlsson
Há tempos tenho percebido o aumento do interesse em religiões de matrizes africanas por parte de meus clientes e, me parece que não só eu tenho me deparado com esse fenômeno, pois ouço durante as supervisões clínicas muitos outros colegas com a mesma percepção, o que produz discussões muito interessantes. As religiões afro-brasileiras tornaram-se populares, principalmente nos últimos anos com o avanço das pautas antirracistas e os terreiros estão cada vez mais inclusivos e diversos. Alguns criticam e reivindicam a negritude desses espaços, embora a realidade atual demonstra outra face e divide opiniões.
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Se em algumas décadas atrás pessoas evitavam professar publicamente este tipo de religiosidade, hoje, tenho testemunhado o contrário, pessoas orgulhosas de fazerem parte de seus terreiros e muitas vezes identificadas com os arquétipos dos Orixás, até mesmo ao buscar soluções para questões pessoais sobre o agir, o pensar e se colocar frente a um desafio.
Sabemos que muitos campos da ciência revelam através das mais diferentes pesquisas os efeitos da fé na experiência humana. Algumas pesquisas demonstram uma relação direta entre religiosidade e bem estar psicológico e ainda ressalta que pessoas que se ocupam com a prática da fé geralmente sentem-se mais felizes, satisfeitas, possuem um senso moral mais ético, afeto e conjunto de crenças mais positivado. (Stroppa & Moreira, Almeida, 2008; Lukoff, 2003).
Lembro-me de um evento em que participei como oradora e tive a honra de dividir a mesa com o Professor Sidnei Nogueira, falávamos de Exú. Naquela ocasião eu aprendi que a cultura de terreiro é um espaço potente de ressignificação de nossa negritude e consequentemente um aumento de nossa potência individual, e este último é sim um dos maiores ganhos que o cliente pode obter em termos psicoterapêuticos. Com os Itans e histórias, é possível constatar características humanizadas dos Orixás e nos aproximar muito desta experiência enquanto seres espirituais que somos.
Entretanto, iniciei minha fala ao dizer que parecia estranho minha presença naquela mesa, pois relacionar Exú e Psicologia era um desafio. Embora não pareça ter nenhuma relação, o instrumento mais utilizado na maioria dos campos da psicologia clínica é o diálogo, a conversa, a fala, e falar, discutir e comunicar tem tudo a ver com Exú. Sempre digo que minhas intervenções não são solitárias, sempre estou muito bem acompanhada.
Historicamente, os terreiros foram lugares de acolhimento para um grupo social excluído dos serviços públicos de saúde, um lugar de cura individual e coletiva, um espaço de acolhimento da dor física, mental e espiritual. As Yalorixás e Babalorixás sempre executaram este lugar de escuta, de aconselhamento, de direcionamento com seus instrumentos próprios, suas ritualísticas. Sabemos que as ritualísticas mais importantes são realizadas no Orí, ou seja, na cabeça, na mente, na psiqué, objeto de interesse da psicologia.
Este artigo é sobre como nós profissionais da psicologia em geral podemos aproveitar positivamente a cosmologia dos orixás quando a/o/e cliente a introduz essa experiência em seu processo de terapia. Muitos colegas sentem-se inseguros ao abordar essas questões em seus consultórios, ou por falta de conhecimento, ou por questões éticas da profissão em relação à neutralidade, ou até mesmo por preconceito. O resultante pode ser a quebra de confiança entre cliente e terapeuta visto que a espiritualidade/religiosidade é um dos campos de subjetivação do sujeito, um organizador, a busca de sentido.
De acordo com Vitor (2008), “a psicoterapia, em si mesma, é hermética, não eleva o sofrimento do cliente para um patamar além, além dos protagonistas da terapia (…). Trabalha-se com o que está ali, o aqui e agora, o sofrimento atual do cliente. A religião por outro lado trata do sujeito trabalhando sua inserção no mundo, contextualizando suas atitudes com as divindades, com o livre-arbítrio e com a lei do retorno. São duas formas distintas de tratar, dois sistemas diferentes mas que possuem os mesmos protagonistas, o terapeuta e o cliente”.
Ademais, sabemos que tudo que surge no setting é material de análise, se é queixa ou demanda o nosso compromisso é dar caminho a tudo que emerge no discurso e auxiliar o cliente em sua busca de sentido, em suas construções e ressignificações. Mas para tanto, é preciso instrumentalizar-se de conhecimentos mínimos para assim atender bem o cliente que pretende trazer à tona sua experiência em religiões de matrizes africanas.
A psicologia ao inaugurar-se como ciência, por muito tempo exigiu uma neutralidade ao questionar tudo aquilo que não era de caráter científico, contudo diante de seus avanços ficou inviável não reconhecer a existência de realidades que transcendem a lógica e que a experiência humana é muito abrangente. E foi aos meados da década de 70 que a chamada 4º Força da Psicologia se estabelece e desenvolve instrumentos que viabilizam a transcendência e a conexão com o sagrado através de meditações, hipnose, técnicas de relaxamento e afins.
Nesse sentido, ao se tratar de clientes que estão inseridos na cultura de terreiro algumas práticas podem ser muito bem vindas tais como banhos energéticos, banhos de assento, defumações, meditações e muitos outros. Essas práticas devem ser acolhidas e reconhecidas enquanto tecnologias ancestrais.
Outra forma de acolher esse tipo de cliente é um conhecimento mínimo sobre os arquétipos dos Oríxas que nos ajuda muito no manejo clínico. Oxum por exemplo, ao lavar primeiro suas jóias, ensina a importância do autocuidado e de priorizar-se pois somos as pessoas mais importante de nossa vida. Esse ensinamento serve especialmente a mulheres que abdicam de tudo em detrimento dos cuidados de todos e esquecem-se de si, frequente na vivência da mulher negra.
Oyá ao se indignar e virar búfalo nos informa a necessidade de reagir diante injustiças, para clientes com dificuldade em se posicionar diante outros, em dar limites, responder à altura quando necessário. Oyá nos ensina também a importância da liberdade financeira, liberdade emocional e completude, para além de ser referência no empreendedorismo para os que temem desafios profissionais.
Oxóssi quando sai para caçar e acerta seu alvo numa flechada só, nos incentiva a ir a busca de nossos objetivos e essa é exclusivamente nossa responsabilidade, de lutar por nossos ideais, de nos tornar autossuficientes e dividir os louros com quem merece estar ao nosso lado. Aqui alguns exemplos mas existem muitos outros que o terapeuta pode incluir em suas intervenções sem correr os risco de entrar em conflitos com sua ética profissional.
Buscamos referências na Grécia antiga, na Filosofia, na Literatura européia e esquecemos da riqueza cultural que possuímos no Brasil e o quanto pode ser pedagógica. As religiões de matrizes africanas é uma realidade na sociedade brasileira e a psicologia tem o dever ético de se aproximar dessa narrativa para assim poder oferecer um atendimento mais qualificado aos clientes desse grupo social.