
Texto: Junia Mamedir
O termo comida afetiva — ou cozinha afetiva — ganhou notoriedade nas últimas décadas para descrever alimentos que evocam lembranças, emoções e vínculos familiares. Originalmente inspirado no conceito inglês “comfort food”, que remete à comida que “conforta” emocionalmente, o termo foi sendo apropriado em diferentes contextos culturais. No Brasil, ele ganhou uma profundidade maior ao se conectar com histórias de resistência, memória e pertencimento — especialmente das populações negras e periféricas.
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Enquanto no uso popular a comida afetiva é muitas vezes associada à “comida da avó” ou aos pratos tradicionais da infância, sua raiz mais profunda está nas práticas alimentares que surgiram em ambientes onde o afeto era, mais do que nunca, um ato de resistência. É o caso dos quilombos, das cozinhas de senzala, das casas de axé e dos terreiros, onde a comida se tornou instrumento de cuidado coletivo, ancestralidade e sobrevivência.
Quilombos e casas: o berço da verdadeira cozinha afetiva
Durante a escravidão, pessoas negras escravizadas encontraram formas de ressignificar o pouco que lhes era oferecido. Com criatividade, sabedoria ancestral e profundo senso de comunidade, elas transformaram ingredientes “descartados” em alimentos ricos, saborosos e simbólicos. Esses espaços, muitas vezes invisibilizados pela historiografia tradicional, são os verdadeiros núcleos da cozinha afetiva brasileira.
As casas negras — casas de mães e tias de santo, cozinhas de quilombos, lares de famílias negras rurais e urbanas — foram os primeiros territórios de afeto onde o alimento não era apenas nutrição, mas também acolhimento, espiritualidade e memória coletiva. A feijoada, o angu, o acarajé, o vatapá, o caruru, a farofa — pratos hoje amplamente consumidos — têm origens que misturam escassez, invenção e conexão espiritual.
A comida nesses espaços servia para curar feridas, celebrar vidas, acalmar tristezas e manter vivas as tradições de um povo que teve sua liberdade arrancada, mas jamais deixou de resistir através do afeto e da oralidade.
O risco da apropriação e do esvaziamento de sentido
Nas últimas décadas, o termo “cozinha afetiva” foi amplamente apropriado pelo marketing gastronômico, muitas vezes desvinculado de qualquer comprometimento com a sua origem histórica e cultural. Hoje, é comum ver restaurantes de alto padrão se referirem à comida afetiva como um “conceito de marca”, com pratos requintados, ambientes gourmetizados e preços inacessíveis para as mesmas pessoas que criaram e preservaram essa cultura.
Essa tendência esvazia o sentido profundo da comida afetiva, reduzindo-a a uma estética ou narrativa superficial. Quando um negócio usa o termo “afeto” apenas como estratégia de venda, sem compromisso com a memória coletiva, a inclusão de pessoas negras ou a valorização das raízes culturais do prato, ele contribui para a exclusão da própria história que a cozinha afetiva representa.
É essencial reconhecer que afeto não é apenas uma decoração na mesa ou um storytelling bonito para redes sociais. Afeto, nesse contexto, é memória viva, é resistência preta, é cuidado ancestral — e isso não pode ser comercializado sem consciência ética.
Caminhos possíveis
Para que o uso da expressão “cozinha afetiva” em empreendimentos gastronômicos seja legítimo e responsável, é fundamental que ele venha acompanhado de:
- Reconhecimento histórico: Saber e declarar de onde vêm as receitas e tradições.
- Representatividade: Incluir pessoas negras nos processos de criação, gestão e valorização cultural da cozinha.
- Acesso: Garantir que a comida continue sendo um meio de afeto real, e não apenas um produto de luxo.
- Respeito: Não romantizar a escassez ou invisibilizar o sofrimento que também compõe essa história.
Conclusão
A comida afetiva não é um modismo. É uma expressão de identidade, memória e resistência, especialmente para o povo negro brasileiro. Ao esvaziar esse termo em nome do lucro, o mercado gastronômico corre o risco de repetir a lógica colonial: explorar saberes, apagar histórias e excluir sujeitos.
Valorizar a cozinha afetiva é, antes de tudo, valorizar as pessoas que a criaram com suas dores, amores e memórias — e isso exige respeito, reparação e verdade.
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