Antigamente eu diria que pessoas negras não tinham motivos para se orgulhar de uma identidade Nerd. Quem cresceu nos anos 90 tinha poucas opções de personagens negros na TV aberta ou na cultura pop que representassem bem qualquer criança ou adolescente negro na fase escolar. Era bem pelo contrário, os que existiam reforçam os estereótipos em nós. Essa falta de representação era especialmente evidente para mim. Vocês devem lembrar daquele coitado que era o Cirilo na versão original de Carrossel ou pior, do Saci no Sítio do Pica Pau Amarelo e eu ainda tive a infelicidade de viver essa fase da adolescência na cidade do Monteiro Lobato, onde até hoje você encontra as apresentações dos textos racistas em peças teatrais nas escolas.
Pra quem nasceu nas últimas décadas, vale ressaltar que não existia internet e os conteúdos não chegavam facilmente nas comunidades negras, por isso muitos ficcionistas negros famosos como Sandra Menezes e Octavia Butler tiveram experiências significativas de SCIFI com a televisão. Mesmo com as limitações, a gente dava um jeito de se divertir e o meu era jogar RPG, porém só podia contar com revistas emprestadas e alguns livros de fantasia que encontrava na biblioteca escolar, eles eram sempre os mais clássicos possíveis para quem curte obras fantásticas: H.G. Wells, Asimov, Júlio Verne, Edgar Allan Poe… autores que acabaram formando meu imaginário. Nada era sobre meu mundo, minha realidade e minha cara, mas tinha uma coisa que me aproximava demais dos Nerds, todos eram odiados na escola.
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Filmes como “A vingança dos Nerds” mostravam como todo o grupo era visto: um bando de desajustados, bobos, fãs de videogames, quadrinhos, naves espaciais, que nunca eram convidados para as festas mais descoladas da turma. Passar a adolescência com essa turma foi muito divertido. No entanto, enquanto me divertia com meus amigos nerds, não percebia que a exclusão que enfrentávamos era diferente, meus amigos espelhavam-se nos heróis das histórias, a imagem dos personagens alimentavam seus egos. O preconceito que caia sobre eles era sobre serem “excêntricos”, por mais que fossem rejeitados e tivessem seus gostos culturais criticados pela maioria, toda exclusão vivida por essa turma poderia ser apenas uma estranheza cultural, nada comparado ao racismo que atravessa inúmeras questões do dia-a-dia.
Por isso, existe ainda uma parcela grande dos Nerds da minha geração que tem dificuldades em se aprofundar neste tema. Até entendo essa reação, afinal eles experimentaram uma exclusão em algum momento da vida e acabam confundindo isso, pois não perceberam que reproduziam a mesma rejeição dentro da comunidade. Historicamente, a representação de personagens negros em quadrinhos, filmes, séries e jogos tem sido limitada e, muitas vezes, carregada de estereótipos negativos. Essa escassez de representatividade não apenas marginaliza as contribuições e experiências dos nerds negros, mas também perpetua uma visão de mundo estreita e homogênea. O racismo presente no mundo todo afastou criadores negros e dificultou que histórias criadas por autores da comunidade se tornassem tão populares quanto os heróis clássicos, os brancos se tornaram o “panteão canônico”, como deuses imutáveis e qualquer alteração gera uma onda de repúdio grosseira.
Acontece que hoje a identidade nerd não é mais rejeitada, ser Nerd se tornou pop, a vingança dos nerds se concretizou e isso trouxe novos desafios para a comunidade. Alguns Nerds se tornaram donos de startups, empresários, escritores famosos, atores e membros influentes do mundo do entretenimento e a experiência da exclusão na adolescência parece ter desaparecido da sua mente, alguns ficaram mais insensíveis ainda à realidade de exclusão da comunidade negra. As novas gerações consomem a cultura nerd sem ter nem noção de como era difícil se identificar assim no passado, elas se agarram aos heróis canônicos de forma mais reacionária ainda, se mobilizando na internet, criando canais no youtube e conseguindo voz e visibilidade que era impensável anteriormente. Eu vi nesse momento um grupo bem diferente daqueles que se tornaram meus amigos, não era mais adolescentes estranhos com dados e livros nas mãos, não estavam mais interessados em criar juntos e pra piorar, não apenas ignoravam as questões raciais, mas estavam se tornando reativas a elas, se tornando agressivos a qualquer menção da discussão, acusando de vitimismo e em alguns casos extremos agredindo com ofensas racistas quem apontasse a falha da visibilidade nessa cultura.
Porém a alma da cultura Nerd é acreditar na sua imaginação, as nossas maiores histórias são sobre seres que atravessam a galáxia, os universos ou enfrentaram seres medonhos em mundos aterrorizantes porque acreditavam em si e nos seus sonhos. É isso que aproxima muita gente que ainda se sente excluída da comunidade, ativistas negros, LGBTQIA+, mulheres e todos aqueles que também acreditam na fantasia. É esse poder nerd que fez nascer e crescer personagens e produtores que passaram a me representar muito, como Blade. É importante ressaltar o ativismo do ator, Wesley Snipes em causas como violência policial e racismo; os personagens do selo Milestone, entre eles o Super Choque e o ativismo dos criadores dentro da indústria dos quadrinhos. Jordan Peele e seus filmes de terror.
É por conta de todos esses criadores, atores e produtores da comunidade que hoje temos várias personagens importantes que estão fazendo muito sucesso e contribuindo pra que a cultura Nerd seja mais inclusiva e representativa. Através de suas obras, esses pioneiros estão quebrando barreiras e construindo um legado de diversidade e aceitação. Personagens como Miles Morales, Riri Williams e Nubia têm inspirado uma nova geração a ver a si mesmos como heróis, não apenas nas páginas dos quadrinhos, mas também na vida real. Diretores como Ava DuVernay e Ryan Coogler têm redefinido o que significa ser um super-herói no cinema, trazendo perspectivas autênticas. Aqui no Brasil, movimentos como a Perifacon têm crescido, mostrando o poder da comunidade Nerd periférica, e nas periferias do norte têm se fortalecido a Convenção Nerd de Cultura e Tecnologia da Amazônia, trazendo o olhar de toda cultura dessa região para dentro da cultura de nerdices.
Infelizmente, como em todas as esferas da sociedade, qualquer pessoa que fale de diversidade e esteja ativamente discutindo os espaços de representatividade, a gente vai encontrar a reação agressiva de gente insensível ou ignorante. Apesar de tudo isso ainda é possível dizer que também tenho um Orgulho Nerd, foi essa identidade que preservou meu imaginário na adolescência e permitiu que eu sonhasse o suficiente para me transformar hoje em um escritor de ficção científica reconhecido e tento contribuir para preencher também a imaginação das próximas gerações de Nerds.