Texto: Shenia Karlsson
Ho ho ho…
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Estamos chegando em um dos momentos mais especiais do calendário anual, o Natal. O Brasil têm adotado muitas tradições além mares e adaptado aos próprios costumes, a exemplo disso comemoramos as datas de final de ano bem do nosso jeitinho, seja de acordo com a região, seja de acordo com nossa classe social, e é por isso que essa diversidade na hora de cortar o enorme peru ao redor das pessoas que mais amamos é tão interessante. É peru com farofa, com arroz e feijão, com salpicão, com maionese, sem esquecer da bendita uva passa, tão adorada para uns e odiada por outros. Comida é nutrição afetiva! Há também aqueles irmãos e irmãs que já enegreceram suas festas e optam pelo lindo Kwanza, afinal, as diretrizes fazem muito mais sentido para nós do que o tão eurocêntrico Santa Claus.
No entanto, me senti impelida a problematizar uma questão que se arrasta há séculos: quem tem direito de desfrutar de momentos especiais em família? Nós negros somos aqueles que desfrutam ou preparam momentos felizes para a branquitude? O natal é uma data sobretudo familiar, a tradição invoca um enquadramento específico e tenta a todo momento enunciar um modelo inflexível de família baseado nas crenças cristãs, a família nuclear. Para tanto é utilizado a família santa e o nascimento de Jesus Cristo encenado pelo tão famoso presépio presente na decoração de muitas residências familiares. A maior problemática em torno do natal ao meu ver é que me parece um momento especial construído somente para grupos específicos, como se os outros grupos não tivessem o direito de desfrutá-lo.
Ademais, podemos observar como o racismo quase determina quem têm ou não o direito de curtir o natal. Como no Brasil o conceito de família é normativo, nuclear e brancocênctrico, tende-se a normalizar a felicidade de famílias brancas durante essa época do ano e naturalizar a idéia que negros não têm família estruturada, e portanto não teriam a necessidade de comemorar a data tão especial com os seus. De acordo com Lia Vainer Schuman em seu livro Famílias Interraciais: tensões entre a cor e o amor , “(…) a branquitude é o produto da história e é uma categoria relacional. Como outras, repito: não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos”.
Podemos a partir disso observar que o legado colonial estende-se em tempos atuais influenciando em todos os tipos de interação, e o natal é apenas um dos mais variados reflexos de como a vida social da comunidade negra sofreu e sofre até hoje prejuízos materiais e simbólicos. A autora Angela Davis em sua obra Mulheres, Raça e Classe enfatiza a devastação da família negra no período colonial tornando uma instituição “matrifocal com primazia da relação entre mãe e criança e apenas laços frágeis com o homem negro”. Como as famílias negras foram destruídas pela violência colonial devido ao seu caráter mercantilista de vidas humanas, a desconfiguração da família negra foi-se naturalizando através dos séculos, acarretando assim a desumanização das interações.
É possível observar o agito das famílias brancas nessa época do ano: a compra de presentes, as inúmeras festas e confraternizações, as decorações e o preparo dos cardápios. Contudo, toda a estrutura e condições para que todas essas reuniões aconteçam contam na maioria das vezes com mãos negras,racializadas e pobres. São pessoas negras nesse país que trabalham até a véspera do feriado sem ao menos ter o direito de se preparar, que chegam tarde em suas casas ou nem chegam porque estão nas portarias dos prédios, nas casas das sinhás preparando a ceia e lavando a louça, no supermercado até às 22 horas na véspera do Natal. Tudo isso para garantir o conforto e a felicidade da branquitude elitista e burguesa. Mas a fulana é quase da família, e nessa fulana nunca está com sua própria família. A sinhá olha pra empregada e pensa que família é um luxo que ela não tem o direito, essa é a verdade.
Como somos vistos como corpo trabalho e pessoas sem vínculo familiar significativo não há nenhum constrangimento em anular nossa humanidade e nem lembrar que também temos o direito a confraternizar com os nossos. Temos famílias sim, temos filhos que desejam ganhar presentes, nós temos familiares que nos esperam até a última hora da nossa chegada. Seria uma enorme hipocrisia não denunciar essa prática tão violenta mas infelizmente presente nessa sociedade racista.
Afinal, quando teremos direito ao natal? ao descanso? à confraternização? Se depender da branquitude frágil e carente de ajuda para tudo, nunca. Deixo aqui essa reflexão séria, somos um grupo social jogados à toda sorte de precarização e no natal não seria diferente.
Shenia Karlsson é psicóloga clínica, Diretora no Instituto da Mulher Negra de Portugal, consultora de diversidade e inclusão, supervisora clínica e ativista da saúde mental.
É uma realidade dura se pensarmos que em termos de bem viver somos os últimos a poder apreciar os momentos de comunhão.