Obesidade: quando o cérebro decide mais que a força de vontade

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Obesidade: quando o cérebro decide mais que a força de vontade
Foto: Freepik

Um treinador conhecido por ideias conservadoras e meritocráticas ganhou popularidade ao participar de um programa no YouTube em que debatia com 30 pessoas com obesidade. A meta era provar que emagrecer é uma escolha. O resultado foi a amplificação de estereótipos, a naturalização da gordofobia e a repetição de equívocos sobre um tema que a ciência já posiciona como doença crônica. A experiência cotidiana também desmonta a tese simplista. Todos conhecem alguém magro que come muito, é sedentário e não engorda, e também quem, mesmo comendo de forma equilibrada e se exercitando, enfrenta enorme dificuldade para perder peso. A explicação não cabe em slogans motivacionais, ela está no cérebro.

No especial apresentado por Oprah Winfrey sobre emagrecimento e novas terapias farmacológicas, especialistas colocam a discussão no lugar certo, o da evidência. A medicina contemporânea classifica a obesidade como doença crônica. Há uma década, a American Medical Association formalizou esse entendimento. A médica Fatima Cody Stanford, que participou do processo, afirma, “chamamos a obesidade de doença porque há mau funcionamento na forma como o corpo está operando”. Não se trata apenas de “comer demais e não se exercitar o suficiente”, e sim de uma disfunção real que atinge “mais de dois bilhões de adultos” e que, em muitos países, “mata mais pessoas do que a desnutrição”. A própria Oprah, que chegou a 107,51 kg, vocaliza a dúvida de milhões de pessoas, ser obeso é falta de força de vontade ou é uma condição tratável clinicamente.

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O cerne dessa regulação está no cérebro. Segundo a Dra. Fatima, existem duas vias que influenciam o peso, a anorogênica, que reduz ingestão e armazenamento, e a orogênica, que “apoia o armazenamento de adiposidade”. Em pessoas com sobrepeso e obesidade, essa segunda via costuma estar “aumentada”, sinal de “disfunção na forma como o corpo está regulando o peso”. Oprah traduz essa realidade ao comparar respostas diferentes a comportamentos semelhantes, “Cory pode comer torta de maçã às 11:00 da noite e ele consegue fazer isso. Seu corpo defende um ponto de ajuste muito magro”. No seu caso, diz, “se eu fizesse exatamente os mesmos comportamentos, eu armazenaria mais excesso de adiposidade. Meu corpo está mais predisposto a armazenar mais gordura”, e brinca, “eu sou uma armazenadora de adiposidade”. A síntese é objetiva, “o cérebro sabe onde quer estar e fará o que puder para te levar de volta a esse peso. É por isso que você sempre volta e é nada que você fez de errado. É apenas que o cérebro é superpoderoso”.

Humanizar a discussão implica compará-la a outras doenças crônicas. A Dra. Melanie Jay lembra que “tem diferentes causas e é diferente para cada pessoa”, com influência de genética, ambiente alimentar, oportunidades de atividade física, estresse, trauma e até “medicamentos que causam ganho de peso”. Para reduzir o estigma, a psicóloga Rachel Goldman defende a linguagem de pessoa primeiro, “uma pessoa com obesidade”, tal como se diz “uma pessoa com câncer”. Oprah reforça, “ou uma pessoa que luta com a obesidade”, enfatizando que ninguém deve ser definido pela condição médica. Também é essencial lembrar que “nem todo mundo em um corpo maior tem obesidade”, já que o diagnóstico depende de saúde e funcionamento biológico, não de julgamento estético. Sima Sistani, CEO da WeightWatchers, admite que a própria empresa, “sem saber, introduz[iu] também a vergonha para as pessoas para quem dieta e exercício sozinhos não eram suficientes”, e resume, “a obesidade não é uma falha moral, é uma condição crônica recidivante”.

Com essa base neurobiológica, os tratamentos evoluíram. Mudança de estilo de vida segue essencial, porém, para uma parcela dos pacientes, não é suficiente para vencer o ponto de ajuste cerebral. Ganharam espaço os agonistas de GLP-1 e combinações que atuam nos centros de apetite e recompensa. Eles não são “atalho” nem “cura milagrosa”. A Dra. Fatima explica que “aumentam a via anorogênica” e “diminuem a via orogênica”, agindo diretamente no cérebro. Muitos pacientes relatam, “eu me sinto diferente, algo parece diferente”, porque os fármacos “vão direto à fonte do problema no cérebro”. A resposta, porém, varia. “Há pessoas que tomam os medicamentos e dizem, ‘espere um minuto, perdi dois quilos, por que essa pessoa perdeu 25 quilos’”. Nesses casos, “não é que você falhou no medicamento, é que o medicamento falhou no paciente”, o que indica a necessidade de avaliar outras vias e estratégias. Como compara Sima Sistani em analogia com hipertensão e colesterol alto, “você ainda precisa de intervenção de estilo de vida… mas para alguns, você precisa de um medicamento Statin”.

O que emerge desse corpo de evidências é um convite à empatia e ao cuidado responsável. Quem tenta mudar hábitos e ainda assim enfrenta dificuldade persistente para perder peso não está falhando, está lidando com circuitos cerebrais que defendem um ponto de ajuste. Alimentação equilibrada, sono adequado e atividade física ajudam pessoas com obesidade e todas as outras e fazem parte do tratamento, sem substituir acompanhamento médico. Culpa não trata ninguém. Tratar a obesidade como doença, com linguagem respeitosa, diagnóstico preciso e acesso a terapias eficazes, abre caminho para saúde e autonomia.

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