Mundo Negro

O complexo do branco-salvador no cinema norte-americano

Photo Credit: Hopper Stone.

Sanches Luiz

White-savior, ou o complexo do branco-salvador, é o termo usado quando uma pessoa branca acredita que pode salvar pessoas não-brancas de situações vulneráveis, porém se colocando no meio da história para que assim possa ser retratada como um herói. Esse sistema está infiltrado por décadas em Hollywood e aqui irei mostrar não apenas como afeta os espectadores, mas como também o deixamos passar constantemente despercebido.

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Em 25 de maio de 2020, um ano atrás, George Floyd era assassinado em Minneapolis, Minnesota, Estados Unidos, por Derek Chauvin, um policial branco. O trágico acontecimento desencadeou uma série de manifestações relacionadas ao movimento Vidas Negras Importam por todo o mundo. Com o tema circulando pelas mais diversas mídias, as pessoas procuraram entender mais sobre o movimento e buscar obras que retratem a luta contra o racismo.

O filme Histórias Cruzadas (2012) acabou se tornando o longa mais assistido na Netflix pelos americanos. Nele, conhecemos a jornada de duas empregadas negras durante a era dos direitos civis nos Estados Unidos e seu relacionamento com uma mulher branca. Skeeter (Emma Stone) se torna a salvadora ao colocar “tudo em risco” para contar a história de Aibileen (Viola Davis) e Minny (Octavia Spencer). No final, ficamos com a impressão de que se não fosse pela coragem de Skeeter, as empregadas nunca teriam encontrado a luta pela igualdade por si mesma. Nesses filmes, personagens brancos recebem histórias de amor e um arco complexo enquanto os personagens pretos tendem a ser reduzidos por suas experiências negativas, além de serem passivos. Ainda, os brancos são personagens determinados e otimistas e que geralmente correm o risco de serem mal vistos em sua comunidade para ajudar o outro.

Na década de 60, enquanto ativistas negros lideravam a luta pelos direitos civis, o branco começou a produzir filmes mostrando como eles se relacionavam com o que estava sendo discutido, se colocando no centro de histórias pretas. Dessa forma, muitos espectadores se acostumaram com a ideia de que uma pessoa branca não é capaz de se relacionar numa história sobre raça a não ser que elas se vejam pelos olhos de outro branco. A consequência disso é algo absurdo: personagens negros se tornam coadjuvantes em suas próprias histórias.

Toda essa dinâmica é bem retratada em filmes sobre educação, onde há o professor alegre e motivado que tenta mudar a vida de seus alunos. No elenco de Escritores da Liberdade (2007), que é baseado em fatos reais, há uma troca da mulher latina (na qual a história foi inspirada) por uma personagem branca e onde essa mesma tenta a todo custo salvar os seus alunos, em sua maioria pretos, da “perdição”. O problema com esse sub-gênero é que geralmente há pessoas inspiradoras por trás desses personagens, onde os mesmos vivem situações de violência racial. Porém, a história nunca é contada da maneira como deveria. Ao contrário, eles falam sobre como uma pessoa branca pode os levar à vitória, os educar e libertar, quando na verdade estamos falando de um problema muito mais profundo e sistêmico. Dessa forma, a partir do momento que pessoas brancas demonstram compaixão a causas e lutas de pessoas pretas, elas acham que se absolvem da culpa e privilégio.

Esses filmes acabam tendo maior recompensa em premiações do que aqueles discutindo o mesmo assunto, só que feitos por pretos e aqui vai o porque:  um filme sobre raça feito para uma audiência branca muitas vezes é contado em décadas passadas, assim temos a idéia de que o racismo é uma coisa que aconteceu há muito tempo atrás e que a sociedade evoluiu em sua maioria. Ainda, os mesmos tendem a ter um final feliz ou o que chamamos de “feel-good movies”, onde essa audiência termina o filme com a falsa sensação de bem-estar, pois na mente do espectador branco o filme é um manual de como não ser racista. Por outro lado, quando um filme sobre raça é contada de uma perspectiva preta, sabemos que ali haverá uma experiência do próprio criador quanto ao racismo. Esses filmes vão desafiar e confrontar sua audiência e ao invés de finais felizes e falsas percepções da realidade, irão causar incômodo. Pegue como exemplo o Oscar de 2019: “Green Book – Um Guia Para a Vida” se passa nos anos 60 e conta a historia de Don Shirley, um gênio musical negro e gay. Mesmo sendo considerado um mestre no piano e com alguns doutorados no currículo, sua história é contada do ponto de vista de seu motorista branco. O filme termina de forma satisfatória e agradável para seu tipo de espectador. Já no mesmo ano, “Infiltrado na Klan” que também é um filme sobre raça, escrito e dirigido por Spike Lee, vai terminar de forma totalmente diferente. Não exita em causar desconforto ao lembrar o espectador que o racismo é bastante atual e ainda um assunto em andamento ao colocar imagens do protesto de supremacistas brancos em Charlottesvile no ano de 2017. O grande vencedor da noite foi Green book, mostrando mais uma vez que diretores brancos continuam tendo mais destaque do que diretores negros num assunto que não é dominado por eles.

Dito isso, esse complexo não se resume apenas a relação entre pretos e brancos. Em Lawrence da Arábia (1962), um dos grandes clássicos do cinema, há o homem branco no centro da história de um povo árabe que busca pela independência. O protagonista diz em certo momento do filme: “Eu espero conseguir a liberdade para eles. Eles vão conseguir, eu vou dar a eles.” Outro exemplo, Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), Indiana Jones se torna o herói por ser o único a conseguir encontrar as crianças desaparecidas e a pedra preciosa que foi roubada de uma vila indiana. No filme Gran Torino, o personagem do Clint Eastwood se torna o salvador de uma família asiática mesmo sendo descaradamente racista durante todo o filme. Em Estrelas Além do Tempo (2016) um homem branco derruba uma placa que separa o banheiro feminino das mulheres brancas e pretas, se tornando assim um exemplo.  Mais tarde no filme, esse mesmo personagem chamado Al Harrison dá acesso a sala de controle para Katherine Johnson, interpretada por Taraji P. Henson, para que ela possa assistir ao lançamento do foguete. O problema é que a verdadeira Katherine Johnson disse que, na realidade, teve que assistir o lançamento dos foguetes de sua mesa e, além disso, o personagem de Al Harrison nunca existiu. Com essa informação, fica evidente a criação de um personagem branco numa história sobre pretos apenas para que de forma indireta a atenção se volte para ele.

Filmes que retratam esse complexo são escritos, dirigidos e produzidos por pessoas brancas e para pessoas brancas. No final, o que recebemos é uma narrativa completamente rasa e que dá falsa esperança para seu público estimado, os fazendo acreditar que vivemos em um mundo relativamente melhor e possivelmente os induzindo a idéia de que não existe a possibilidade de racismo a partir do momento em que você se conforta com a presença de um negro.

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