Jordan Peele chamou atenção do mundo quando lançou “Corra” em 2017, trazendo subtexto das tensões raciais nos Estados Unidos, com uma crítica que não poupou nem os Democratas norte-americanos e o racismo internalizado presente em pessoas brancas. Com “Nós”, Peele confirma que seu longa anterior não foi sorte de principiante.
Adelaide e Gabe levam a família para passar um fim de semana na praia e descansar, mas a chegada de versões malignas de si mesmos (os Atrelados) acaba com os planos da família.
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O filme começa como um terror familiar de invasão de domicílio ou slasher, mas Peele joga as convenções do gênero para o alto e deixa o espectador completamente entregue. Pouco dá para prever do que vai acontecer no decorrer da trama.
A primeira quebra de expectativa é a troca de papéis entre os gêneros. Lupita Nyong´o (‘12 Anos de Escravidão‘) é o elo forte da família, inclusive durante os confrontos físicos mostrados no filme, enquanto o grandalhão Winston Duke (‘Pantera Negra’) não faz jus ao seu tamanho e é usado mais como alívio cômico (nem sempre funciona).
Difícil entender a não indicação de Lupita ao Oscar de 2020 pelo papel desempenhado neste filme. O primeiro encontro entre Adelaide e sua cópia do mal é perturbador e a atriz queniana/mexicana transmite em ambas as personagens intimidação e medo de forma tão convincente que a gente consegue temer e torcer por ela ao mesmo tempo. Inquieta, triste, nervosa, potente, ela faz de tudo aqui.
Para quem está cansado de “jumpscare” barato, ‘Nós’ é um bálsamo. Nada de sombras em reflexo da TV, monstros aparecendo do nada. O medo é construído de forma honesta, sem barulhos altos vindo repentinamente. Inclusive a trilha sonora composta por Michael Abels é fantástica, mais minimalista e menos óbvia do que o que se costuma ver no gênero.
Um dos pontos fortes do filme é ter todos os seus personagens como pessoas inteligentes. Costume irritante em produções de terror é fazer com que alguém vá fazer uma investigação onde aconteceu um crime violento ou se separe do grupo sem motivo para que se use isso como facilitação narrativa. Aqui, nem mesmo as crianças agem de forma estúpida, fazendo com que a identificação seja mais fácil, o que aumenta a preocupação com o destino desses indivíduos. Se você não se preocupa com um personagem, boa parte da tensão morre.
As crianças interpretadas por Shahadi Wright Joseph (Umbrae) e Evan Alex (Jason) não atrapalham, pelo contrário, sem elas os apuros da família seriam muito mais difíceis de enfrentar, uma vez que suas cópias malignas são tão ameaçadoras quanto as dos pais. O diretor não desperdiça o elenco e oferece função narrativa para cada um.
O diretor deixa peças de um quebra-cabeça durante todo o longa que parecem aleatórias, mas com o decorrer da experiência as coisas vão se encaixando. É um filme cheio de alegorias e metáforas, e dificilmente se pega assistindo uma única vez. Tudo é feito para causar desconforto e felizmente Peele consegue.
As duplicatas malignas moram em túneis subterrâneos dos Estados Unidos e decidem não viver mais às sombras e sob submissão dos originais, em uma possível alusão às pessoas que são escravas de um sistema que não permite individualidade. Ao colocar os personagens como protagonistas e antagonistas ao mesmo tempo, o idealizador aponta o dedo e nos diz que o maior inimigo do indivíduo é ele mesmo, e só a conscientização das mazelas faz com que haja rebelião, que é o que acontece com a cópia de Adelaide.
“Nós” mistura horror, fantasia e ficção científica em um filme carregado de alegorias com atuação excelente de Lupita Nyong´o. É uma experiência nervosa, desconcertante. Os dez minutos finais são de tirar o fôlego e assistir duas ou três vezes para compreender as metáforas sutis sobre privilégios e rancor.
Disponivel no Amazon Prime Video.